A revista ex-isto é uma publicação dedicada ao existencialismo, a fenomenologia, a filosofia e a psicologia, bem como suas relações com a histórias, as artes e a vida.
Há mais de dois anos surgiu a ideia de criar uma revista sobre essas temáticas, porém foi preciso tempo, amadurecimento da proposta e soma de interessados em difundir tais temáticas.
Aqui estamos com o primeiro número da revista, em formato digital e distribuição totalmente livre, com seções sobre filosofia, psicologia, existencialismo, gênero, literatura, artes, indicação de livro, indicação de filme, diversidades e artigo.
Conteúdo:
-Não há fatos, apenas interpretações - Bruno Carrasco
-O dia em que procurei um terapeuta existencial - Patricio Lauro
-Existencialismo: doutrina de ação - Luana Orlandi
-Essência, existência, gênero - Pedro Sammarco
-Um “demônio” trágico - João Marcos
-A era da estupidez - George Christian
-Cotidiano - Guto Nunes
-Livro: O ser e o nada - Kaíque Jeordhanne
-Filme: A primeira noite de tranquilidade - Graziela Pinheiro
-O que é o esperanto? - Fábio Silva
-Fundamentos da psicoterapia fenomenológico existencial - Bruno Carrasco
Novembro de 2020.
Distribuição livre.
Publicação ex-isto.
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.
2. revista ex-isto no. 1 | p. 1
Revista ex-isto
Há pouco mais de dois anos surgiu a ideia
de criar uma revista sobre existencialismo,
fenomenologia, filosofia e psicologia,
relacionando com a história, as artes e a
vida. Contudo, para colocá-la em prática,
foi preciso tempo e amadurecimento dessa
proposta, assim como somar interessados
em difundir tais temáticas. Enfim, aqui
estamos com o primeiro número da
revista ex-isto em formato digital.
Bruno Carrasco, novembro de 2020.
Conteúdo
Não há fatos, apenas interpretações | p. 2
O dia em que procurei um terapeuta existencial
| p. 5
Existencialismo: doutrina de ação | p. 7
Essência, existência, gênero | p. 11
Um “demônio” trágico | p. 15
A era da estupidez, George Christian | p. 17
Cotidiano, Guto Nunes | p. 18
Livro: O ser e o nada | p. 19
Filme: A primeira noite de tranquilidade | p. 20
O que é o esperanto? | p. 21
Fundamentos da psicoterapia fenomenológico
existencial | p. 22
O que é 'ex-isto'? | p. 34
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Imagem da capa: Lago antes do nascer do sol,
Ferdinand Hodler, 1918.
_________________________________________________
Carrasco, Bruno Barbedo, 1982-,
Revista ex-isto: existencialismo, filosofia,
psicologia e artes / Bruno Carrasco (organizador). no.
1. Pouso Alegre, MG: ex-isto, 2020.
_________________________________________________
Este trabalho está licenciado com uma Licença
Creative Commons - Atribuição-NãoComercial
4.0 Internacional.
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3. revista ex-isto no. 1 | p. 2
Filosofia
Não há fatos, apenas interpretações
O que Nietzsche quis dizer com
"Não há fatos, apenas interpretações"?
Muitos são aqueles que criticam essa
sentença, defendendo os fatos como
inquestionáveis, criticando e classificando
esta ideia como absurda e sem sentido,
enquanto outros a enaltecem enquanto
característica da filosofia pós-moderna.
(Friedrich Nietzsche)
Em ambos os casos, a própria frase
gera diferentes interpretações e
posicionamentos, portanto podemos
começar seu entendimento partindo dela
mesma, do modo como ela é interpretada,
pois essa mesma citação não é um fato,
que possui um entendimento igual para
todos, mas sim entendida por meio de
diversas interpretações.
Para entendê-la, penso ser
importante conhecer um pouco a respeito
da filosofia nietzschiana, em especial o
modo como esse pensador entende o
conhecimento e a verdade. Para Nietzsche,
a verdade e o conhecimento não
correspondem a algo único, acabado ou
absoluto, mas sim como elementos
determinados por interesses e
perspectivas distintas.
Para Nietzsche, todo conhecimento é
inevitavelmente guiado por interesses e
condicionamentos subjetivos, ideológicos; o
conhecimento resulta da projeção de
nossos impulsos e anseios, razão pela qual
Nietzsche considera sempre determinado
por certa perspectiva, seja individual, seja
sócio culturalmente determinada.
(Oswaldo Giacoia, em 'Nietzsche', 2000)
Granier (2009) apresenta como
características da filosofia nietzschiana o
perspectivismo e o pluralismo. Nesse
sentido, um fato nunca é entendido como
algo independente da perspectiva de quem
o observa, ou seja, os fatos são sempre
observados e interpretados por um viés e
por valores específicos. Deste modo,
coexistem diferentes interpretações e
pontos de vista sobre um mesmo fato.
De acordo com Giacoia (2006), o
perspectivismo entende que todo
conhecimento depende sempre de
condicionamentos subjetivos, históricos,
sociais, econômicos, culturais e
psicológicos, que determinam a valoração
e implicam uma perspectiva específica, de
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4. revista ex-isto no. 1 | p. 3
modo que não há conhecimento absoluto,
neutro ou objetivo.
O pluralismo corresponde às
tendências filosóficas que constatam a
coexistência de variados princípios que
constituem as coisas e a realidade,
tendendo assim a acolher os diferentes
pontos de vista, distintas formas de
valoração, experiências culturais,
convicções ou visões de mundo.
O pluralismo Nietzschiano é uma
determinação primordial da realidade, (...).
Não existe conhecimento a não ser
interpretativo, e não existe interpretação a
não ser no plural.
(Jean Granier, em 'Nietzsche', 2009)
Harari (2015) comenta que até a
década de 1940 não havia um crime de
"estupro da esposa", pois a mulher era
entendida como um "objeto" que pertencia
ao homem: ao pai, ao irmão ou ao marido.
Seu "uso" era um direito desses homens.
Hoje entendemos essa antiga prática como
absurda e abusiva, portanto o
entendimento sobre as relações sexuais e
o respeito ao corpo se transformou de
acordo com a época e contexto.
Agora, analisemos outra frase de
Nietzsche: "não há fatos, apenas
interpretações". Ele não está proferindo
uma verdade absoluta com essa frase, pois
não é essa a intenção de sua filosofia. Além
disso, podemos aplicar essa sentença a ela
mesma, de modo que a própria frase se
apresenta como uma interpretação, e não
como uma verdade.
Em sua frase, o próprio filósofo se
coloca neste sentido, ou seja, ele não
apresenta a sua filosofia como uma
verdade absoluta, mas como uma
possibilidade, um caminho. Examinemos,
então, essa frase contextualizada em seu
fragmento póstumo:
Contra o positivismo, que permanece no
fenômeno: ‘só há fatos’, diria eu: não,
justamente não há fatos, apenas
interpretações.
(Friedrich Nietzsche, KSA XII, 7 [60])
Positivismo é uma tendência de
filosofia que se mantêm apenas nos fatos
enquanto observáveis e mensuráveis. Mas,
para Nietzsche, um fato nunca é observado
apenas enquanto fato, por ser sempre
interpretado e valorado. Não é possível
entender as coisas "em si". Enquanto o
positivismo se detêm aos fatos, o filósofo
vai declarar que o entendimento de um
fato é resultante de uma interpretação.
Seu entendimento apresenta que os
fatos são sempre tomados por uma
perspectiva específica, e esse
entendimento propõe um inacabamento à
filosofia, pois todo entendimento e
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interpretação se dá, inevitavelmente,
dependendo de um momento histórico, de
condições, interesses, situações e
circunstâncias específicas, tal como
comenta em 'Humano, demasiado
humano':
Falta de sentido histórico é o defeito
hereditário de todos os filósofos (...) Não
querem aprender que o homem veio a ser,
e que mesmo a faculdade de cognição veio
a ser (...) tudo veio a ser; não existem fatos
eternos: assim como não existem verdades
absolutas.
(Nietzsche em 'Humano, demasiado
humano', aforismo 2)
O conhecimento e a verdade não
correspondem a algo dado, mas criado,
inventado e recheado de interpretações.
Apesar de conhecermos o mundo de um
modo, ele pode ser sempre interpretado
de outro modo, pois não há um sentido
por detrás das coisas, mas inúmeros
sentidos e perspectivas possíveis.
Como crítico da metafísica,
Nietzsche entende que o conhecimento e a
verdade não correspondem a algo dado, a
um fato. A verdade, para o filósofo, é algo
criado, inventado e recheado de
interpretações. O mundo e as coisas
podem sempre ser interpretados de outro
modo, pois não há um sentido por detrás
das coisas, mas inúmeros sentidos e
perspectivas possíveis.
Nosso conhecimento de mundo
está sempre relacionado aos nossos
impulsos e intenções, por isso mesmo
Nietzsche coloca em questão a vontade de
verdade, entendendo que interpretamos o
mundo a partir de nossos impulsos e
necessidades diversas, onde cada impulso
opera com um desejo de domínio,
buscando impor sua perspectiva como
norma sobre os outros, onde não há
verdades absolutas.
Para ele [Nietzsche], o conhecimento não
passa de uma interpretação, de uma
atribuição de sentidos, sem jamais ser uma
explicação da realidade. Ora, o conferir
sentidos é, também, o conferir valores, ou
seja, os sentidos são atribuídos a partir de
uma determinada escala de valores que se
quer promover.
(Aranha; Martins, em 'Filosofando', 1993)
Referências:
ARANHA; MARTINS. Filosofando: introdução à
filosofia. São Paulo: Moderna, 1993.
GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São
Paulo: Publifolha, 2000.
GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Pequeno Dicionário
de Filosofia Contemporânea. São Paulo:
Publifolha, 2006.
GRANIER, Jean. Nietzsche. Porto Alegre: L&PM,
2009.
HARARI, Yuval. Sapiens - uma breve história da
humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2015.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado
Humano. Companhia das Letras, 2005.
Por Bruno Carrasco, terapeuta dos afetos,
estudioso de filosofia e psicologia, em
favor da ampliação de possibilidades de
escolhas e do cuidado de si.
www.fb.com/brunodevir
www.instagram.com/brunodevir
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6. revista ex-isto no. 1 | p. 5
Psicologia
O dia em que procurei um
terapeuta existencial
Aconteceu quando eu ainda era
um estudante de psicologia, que como
outros passou boa parte da graduação
pensando não precisar da tão falada
psicoterapia, mas com a realidade dos
atendimentos chegando tão rápido,
decidi ir e falar de uma ou outra coisa que
me incomodava, “bobagem sabe”, “coisa
do dia a dia”, “coisas que todo mundo
vive”. Então foi assim, escolhi um
profissional que já conhecia, sabia ser
alguém sério, marquei a sessão e fui,
chegando lá não sabia muito bem o que
dizer, na sala de espera já me perguntava
se realmente tinha sido uma boa ideia,
por que afinal “eu não precisava, era só
pela faculdade mesmo”. Deu o horário, o
terapeuta me acompanhou até o
consultório, eu escolhi uma poltrona e me
sentei, e aí, a partir desse momento
comecei uma das melhores experiências
da minha vida.
Conversei por uma hora com outra
pessoa que realmente me ouviu, que
estava atento a cada palavra, que
demonstrou profundo interesse por cada
banalidade ou “besteira” que eu contava e
que fui percebendo não ser tão banal
assim, e que nem era tanta “besteira”,
que ali haviam coisas importantes que
precisavam sair de dentro do meu
imaginário, que precisavam ser ditas em
voz alta, não para o psicólogo, mas para
mim mesmo.
Ao contrário do que eu esperava,
não houveram muitas perguntas, mesmo
estudando psicologia, eu ainda carregava
o estereótipo das mídias de que o
terapeuta vai te aplicar “zilhões” de
perguntas, de que ele iria querer invadir
meus mais profundos segredos e que de
alguma forma poderia até mesmo saber
se eu estivesse mentindo em algum
momento, mas não as poucas perguntas
que vieram foram simples, diretas e
cirúrgicas, e talvez nem fossem bem
perguntas, era o famoso “fale mais sobre
isso” ou “como é isso pra você”, mas foi
tão bem aplicado, que me levava a pensar
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em respostas e relacionar vivências e
sentimentos que eu nunca havia
considerado, que talvez nunca tivesse de
alguma forma relacionado.
Logo nessa primeira sessão, passei
a compreender que força e coragem
frente a vida não tinham nada a ver com
aguentar tudo calado, ou suportar a dor
sem demonstrar, mas sim tem relação
com compreender, ter a real bravura de
encarar-se, de sentir de verdade e saber o
motivo do que se sente, de avaliar as
escolhas, boas e ruins e lidar de verdade
com a responsabilidade, e não com viver
a famosa má-fé de “está tudo bem”, logo
de cara aprendi a importância que meus
sentimentos e emoções tinham e quando
eles precisavam ser demonstrados e
expostos, assim como passei a pensar
que haviam momentos que eram só
meus, e tudo bem. Passei a me aceitar
melhor, fisicamente e emocionalmente, e
a não esperar tanto o julgamento dos
demais sobre a vida, mas sim ter a minha
percepção e criar consciência desta.
Quando a sessão acabou, eu saí
do prédio e senti algo inédito, uma
profunda leveza, um alívio enorme, como
se existisse um peso invisível sob meus
ombros que tinha finalmente sido
aliviado. O que quero dizer aqui é que
com um terapeuta existencial, encontrei
empatia e acolhimento, encontrei
realmente um espaço meu que não
simplesmente me ligou a uma pessoa que
tinha técnicas de psicologia para aplicar
em mim, mas que me colocou realmente
em contato comigo mesmo.
Deixo este relato, pois tenho a
esperança de que por aí tem uma outra
pessoa nesse ponto crítico de ir ou não a
terapia, e espero que essa vivência possa
auxiliar na sua escolha.
Por Patricio Lauro, psicólogo existencial,
professor, responsável pelo podcast
‘Sessão Brainstorming’, amante da
filosofia, espírito livre.
www.fb.com/patriciopsi
www.instagram.com/patriciolaurom
www.youtube.com/sessaobrainstorming
Ser-com: um casal de psicólogos falando
sobre psicologia, relações e a vida.
www.instagram.com/sercompsi
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8. revista ex-isto no. 1 | p. 7
Existencialismo
Existencialismo: doutrina de ação
Como estudante de Psicologia,
buscava uma vertente que viesse de
encontro com minhas ideias e percepções
de indivíduo e de mundo para o
atendimento clínico futuro. Quando,
brevemente, tive contato com o conceito
de que “o homem é o único responsável
por seu caminho” e li, pela primeira vez,
Jean Paul Sartre sentenciar que “não
importa o que a vida fez de ti, e sim o que
você faz com o que a vida fez de você”,
percebi que havia encontrado algo que,
finalmente, fazia sentido. Era o
Existencialismo.
A escola ou doutrina existencialista
surge entre os séculos XIX e XX na Europa
e tem entre seus principais expoentes
Søren Kierkegaard, Martin Heidegger e
Jean Paul Sartre. Cada qual a sua
maneira, esses pensadores refletem
acerca de temas comuns, tais como
liberdade, escolha, responsabilidade,
angústia e finitude. E colocam o homem
como o centro de sua experiência de vida,
em outras palavras, como o autor de seu
próprio destino.
“A existência precede a essência”
Contrariando a ideia cartesiana
que separa o corpo e a mente, para os
filósofos do Existencialismo, corpo e
mente são indissociáveis. Além disso,
estudiosos existencialistas colocam que,
antes de nascer, o homem é “nada” e,
somente a partir do momento em que se
coloca no mundo, em contato com outros
homens e na ocasião de suas primeiras
escolhas, é que esse homem se torna um
indivíduo capaz de construir sua essência
(valores, ideais, projetos).
O homem, tal como o existencialista o
concebe, só não é passível de uma
definição porque, de início, não é nada: só
posteriormente será alguma coisa e será
aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim,
não existe natureza humana, já que não
existe um Deus para concebê-la. O homem
é tão-somente, não apenas como ele se
concebe, mas também como ele se quer;
como ele se concebe após a existência,
como ele se quer após esse impulso para a
existência (SARTRE, p. 10, 2014).
Melhor explicando, a essência do
homem se dá a partir de seu nascimento
e das escolhas que faz ao longo de seu
projeto de vida, até a morte. Essa
essência, portanto, não vem pronta, é
mutável e se constitui ao longo da
existência/experiência de cada indivíduo,
em conformidade com suas escolhas.
Ainda de acordo com Sartre em
seu manifesto em defesa do
Existencialismo – O Existencialismo é um
Humanismo – “o homem nada mais é do
que aquilo que ele faz de si mesmo: é
esse o primeiro princípio do
existencialismo. É também a isso que
chamamos de subjetividade: a
subjetividade de que nos acusam” (p. 10,
2014).
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9. revista ex-isto no. 1 | p. 8
Liberdade x responsabilidade
O ser é livre para escolher o seu
caminho. Suas escolhas são realizadas a
todo momento e, ainda que o indivíduo
imagine “não escolher”, estará realizando
a escolha de “se levar pela multidão”,
deixar que outros escolham para si.
Contudo, essa liberdade acarreta sempre
a responsabilidade pelos resultados –
positivos ou negativos – de cada uma
dessas escolhas.
Desse modo, o primeiro passo do
existencialismo é o de pôr todo homem na
posse do que ele é e de submetê-lo à
responsabilidade total de sua existência.
Assim, quando dizemos que o homem é
responsável por si mesmo, não queremos
dizer que o homem é apenas responsável
pela sua estrita individualidade, mas que
ele é responsável por todos os homens
(SARTRE, p. 11, 2014).
O sujeito pode, por exemplo,
escolher deixar um emprego de prestígio
e com bom salário por não suportar as
regras e a rotina do dia a dia. Porém, terá
de lidar com as consequências de ficar
sem o dinheiro, de precisar buscar um
novo emprego, da frustração da família
com sua decisão etc. Ou ele pode, de
outra forma, continuar nesse emprego
que não lhe traz felicidade, mas que paga
as contas, traz alegria para a família e
prestígio social. Seja qual for a decisão, o
sujeito sempre terá de fazer escolhas na
vida, das mais simples às mais
complexas. E se responsabilizar por cada
uma delas, sabendo que as
consequências refletem não apenas em
sua vida, mas em toda a sociedade.
Ainda de acordo com Jean-Paul Sartre,
Ao afirmarmos que o homem se escolhe a
si mesmo, queremos dizer que cada um de
nós se escolhe, mas queremos dizer
também que, escolhendo-se, ele escolhe
todos os homens. De fato, não há um
único de nossos atos que, criando o
homem que queremos ser, não esteja
criando, simultaneamente, uma imagem
do homem tal como julgamos que ele deva
ser. Escolher ser isto ou aquilo é afirmar,
concomitantemente, o valor do que
estamos escolhendo, pois não podemos
nunca escolher o mal; o que escolhemos é
sempre o bem e nada pode ser bom para
nós sem o ser para todos. Se, por outro
lado, a existência precede a essência, e se
nós queremos existir ao mesmo tempo
que moldamos nossa imagem, essa
imagem é válida para todos e para toda a
nossa época. Portanto, a nossa
responsabilidade é muito maior do que
poderíamos supor, pois ela engaja a
humanidade inteira (p. 12, 2014).
Angústia e má-fé
A responsabilidade por cada
escolha feita é imensa e, como vimos, não
é possível deixar de escolher, a partir do
momento em que o homem nasce no
mundo, até o momento em que deixa de
existir. O sentimento que acompanha
essas escolhas é a angústia. Angústia,
desamparo, desespero são termos
bastante presentes nos estudos do
Existencialismo. Pois não é possível estar
no mundo escolhendo a si mesmo e aos
outros homens sem deparar com esses
afetos.
Para Sartre, “o homem é angústia”
(p. 13, 2014). E para compreender a
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angústia na concepção existencialista, o
pensador propõe o seguinte:
O homem que se engaja e que se dá conta
de que ele não é apenas aquele que
escolheu ser, mas também um legislador
que escolhe simultaneamente a si mesmo
e a humanidade inteira, não consegue
escapar ao sentimento de sua total e
profunda responsabilidade. É fato que
muitas pessoas não sentem ansiedade,
porém nós estamos convictos de que estas
pessoas mascaram a ansiedade perante si
mesmas, evitam encará-la; certamente
muitos pensam que, ao agir, estão apenas
engajando a si próprios e, quando se lhes
pergunta: mas se todos fizessem o
mesmo?, eles encolhem os ombros e
respondem: nem todos fazem o mesmo.
Porém, na verdade, devemos sempre
perguntar-nos: o que aconteceria se todo
mundo fizesse como nós? e não podemos
escapar a essa pergunta inquietante a não
ser através de uma espécie de má fé (p.
14, 2014).
Diferentemente da ideia do
senso-comum, para o pensamento
existencialista a má-fé acontece quando
um homem “mente para si mesmo”, não
reconhecendo sua liberdade de fazer
escolhas e se autodeterminar. Tentando
mascarar sua angústia por ter de escolher
a todo momento, o indivíduo abre mão
de sua autenticidade, de uma vida
autêntica, passando a viver escolhas de
outros – vivendo de maneira inautêntica,
fingindo crer que as escolhas já estão
postas, sendo impossível, assim, de
serem transformadas.
O indivíduo que se submete às
regras e normas sociais, sem
questioná-las ou mesmo sem acreditar no
que vive; aquele Homem que mente para
si mesmo, seria o indivíduo que vive na
má-fé existencialista.
Cada homem deve perguntar a si próprio:
sou eu, realmente, aquele que tem o
direito de agir de tal forma que os meus
atos sirvam de norma para toda a
humanidade? E, se ele não fazer a si
mesmo esta pergunta, é porque estará
mascarando sua angústia. Não se trata de
uma angústia que conduz ao quietismo, à
inação. Trata-se de uma angústia simples,
que todos aqueles que um dia tiveram
responsabilidades conhecem bem. (...)
Veremos que esse tipo de angústia – a que
o existencialismo descreve – se explica
também por uma responsabilidade direta
para com os outros homens engajados
pela escolha. Não se trata de uma cortina
entreposta entre nós e a ação, mas parte
constitutiva da própria ação (SARTRE, p.
14-16, 2014).
“Doutrina de ação”
Posso finalizar o texto com a
afirmação sartreana de que, acima de
tudo, o Existencialismo é uma “doutrina
de ação” (p. 48, 2014). Pois se trata de
colocar o sujeito como centro do seu
universo, um “universo humano” ou
“universo da subjetividade humana” (p.
46, 2014), em que a relação dialética de
ser-no-mundo (in Ser e Tempo,
HEIDEGGER, 1927), em que o homem
existe, nasce no mundo e, só depois,
constrói sua subjetividade, sua essência,
por meio de escolhas que transformam
não apenas a si, mas a todos em
determinado local, determinada época e
contexto histórico, gera responsabilidade
e uma angústia propulsora de ações e
mudanças significativas tanto
individualmente, como coletivamente.
Por perseguir “objetivos
transcendentes é que ele (o homem)
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11. revista ex-isto no. 1 | p. 10
pode existir; sendo o homem essa
superação e não se apoderando dos
objetos senão em relação a ela, ele se
situa no âmago, no centro dessa
superação” (SARTRE, p. 47, 2014). Ainda
sobre o caráter humanista do
Existencialismo, que coloca o Homem
como único legislador de si:
...recordamos ao homem que não existe
outro legislador a não ser ele próprio e
que é no desamparo que ele decidirá
sobre si mesmo; e porque mostramos que
não é voltando-se para si mesmo mas
procurando sempre uma meta fora de si –
determinada libertação, determinada
realização particular – que o homem se
realizará precisamente como ser humano
(p. 47, 2014).
A transcendência do homem
existencialista reside no seu esforço de
superação de vida – nas escolhas
ininterruptas objetivando romper
barreiras, explorar possibilidades para
alcançar sua subjetividade mais autêntica,
alterando a si próprio, ao outro e à
sociedade.
Referências:
REYNOLDS, J. Existencialismo. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2013. (Série Pensamento Moderno).
SARTRE, J. P. O Existencialismo é um
Humanismo. 4a ed. São Paulo: Vozes, 2014.
Jean-Paul Sartre (1905-1980)
Por Luana Muñoz de Oliveira Orlandi,
jornalista e estudante de psicologia.
E-mail: luana_orlandi@uol.com.br
nov.2020 | ex-isto.com
12. revista ex-isto no. 1 | p. 11
Gênero
Essência, existência, gênero
Aristóteles defendia que
compreender a verdadeira causa de um
evento era intuir sua essência,
especificidade e necessidade. Outro
filósofo que corroborou com as idéias de
Aristóteles foi o alemão Gottfried Wilhelm
Leibniz (1646–1716). Para ele, o mundo
foi criado para um determinado fim. Tudo
o que existe tem uma causa final que
define o seu propósito e a sua existência.
Nada acontece sem uma razão profunda
suficiente. Agir para um fim e, em relação
a este, avaliar os próprios meios é típico
da natureza humana. Conforme a
hipótese finalista, a natureza também
seria movida por análogo critério de
intencionalidade. O cristianismo fez do
finalismo sinônimo de providência divina.
Influenciada pelo pensamento
essencialista e finalista, as questões de
gênero foram sendo construídas pelas
normas religiosas, médicas, políticas e
jurídicas. Portanto, o raciocínio
estabelecido foi o seguinte: aquele que é
definido como homem biológico foi feito
com um pênis. Depois foi dotado de uma
“essência masculina”. Sua finalidade é
buscar uma mulher biológica que foi feita
com uma vagina e dotada de uma
“essência feminina”. A partir desse
encontro, os dois estabelecerão uma
relação complementar e serão os
responsáveis pela perpetuação da
espécie humana (Abbagnano, 2007;
Chauí, 2003; Nicola, 2005 apud Antunes,
2017).
Além de garantirem a
continuidade da vida, estarão cumprindo
com as normas religiosas e
mandamentos sociais estabelecidos.
Aristóteles ainda dizia que tudo é
composto de uma substância, o termo
significa literalmente o que está por baixo
de. Não possui uma existência acidental e
eventual. Ela existe para si. Tem vida
própria e goza de determinadas
propriedades possuindo apenas uma
essência. Substância e essência
coincidem.
Nesse caso podemos pensar na
“essência masculina” e na “essência
feminina”. Essas, por sua vez, são
compostas de comportamentos
normatizados e específicos para cada
gênero em questão. Tal forma de
raciocinar ficou conhecida na filosofia
como essencialismo. As essências são
produzidas através de respostas dadas à
seguinte pergunta: o que é isto ou aquilo?
Quando se pergunta, por exemplo, o que
é o gênero, a mulher, o homem, o idoso
ou a travesti, está se perguntando pela
definição desses entes.
Para Aristóteles pode-se descrever
a essência como aquilo que permanece e
se conserva imutável, apesar da mutação
aparente. Definir a essência da vida é
mais difícil do que definir a essência de
um triângulo, por exemplo. Em oposição
ao essencialismo, há outra corrente na
filosofia denominada de existencialismo.
nov.2020 | ex-isto.com
13. revista ex-isto no. 1 | p. 12
Essa linha de pensamento diz que o ser
humano não é um conjunto de teorias.
Há uma preocupação com o sentido ou o
objetivo das vidas humanas, mais que
com verdades científicas ou metafísicas
sobre o universo.
Assim, o existencialismo foi
influenciado pela fenomenologia do
filósofo alemão Edmund Husserl (1859-
1938). Tal pensamento dizia que a
experiência interior ou subjetiva é
considerada mais importante do que a
verdade “objetiva”. O existencialismo diz
que o homem não foi planejado por
alguém para uma finalidade, como os
objetos que o próprio homem cria. O
homem se faz em sua própria existência.
Não havendo tal essência, todos são
iguais e igualmente livres para se fazerem
em relação a determinado contexto.
Afirma o primado da existência sobre a
essência.
Não há afirmações gerais e
verdadeiras sobre o que os homens
devem ser. Um de seus principais
representantes é o filósofo francês
Jean-Paul Sartre (1905-1980) que leva
esse indeterminismo às suas mais
radicais consequências. Para Aristóteles,
e muitos outros filósofos, a essência de
ser humano era ser racional. Mas para
Sartre, a pessoa deve produzir sua
própria essência. A existência precede a
essência. Como seres conscientes,
estamos sempre querendo preencher o
“vir a ser” que na realidade é a verdadeira
“essência” do nosso ser consciente.
Queremos nos transformar em coisas em
vez de permanecer perpetuamente num
estado em que as possibilidades estão
sempre irrealizadas.
Para Sartre só nos tornamos algo
acabado quando morremos. O homem
passa toda sua existência em um
processo de devir. Estamos sempre
abertos às novas possibilidades de
reinvenção partindo de um determinado
contexto existencial possível. Sartre
chamou isso de facticidade. Ela diz
respeito às resistências e objetos que a
liberdade necessariamente se defronta
quando cria nova situação. Como
exemplo de facticidade, podemos pensar
no sexo biológico, família, país, cidade,
cultura, época e condição socioeconômica
que nascemos.
As condições impostas pela
facticidade conjugadas ao significado
dado pela liberdade se combinam para
criar uma nova situação. Sartre defende
que não importa o que foi feito do
indivíduo, e sim o que o indivíduo faz com
aquilo que foi feito dele. A resistência é
intrínseca à liberdade e ao humano.
Travestis nasceram biologicamente
homens. Podemos pensar que esse fato
remete à facticidade ou àquilo que foi
feito delas. Alteram seus corpos com
signos considerados culturalmente
próprios do feminino. Esse fato remete à
liberdade ou ao que fazem com aquilo
que foi feito delas.
No entender de Sartre estamos
condenados à liberdade. Cada ato
contribui para definir como nos
apresentamos ao mundo. Em qualquer
momento podemos começar a agir de
modo diferente e desenhar um retrato
diferente de nós mesmos. Há sempre
nov.2020 | ex-isto.com
14. revista ex-isto no. 1 | p. 13
uma possibilidade de mudança, de
começar a fazer um tipo diferente de
escolha. Temos o poder de nos
transformar indefinidamente, tendo
sempre como ponto de partida, nossa
facticidade. Não há nenhuma “essência”
determinada que oriente a priori o
comportamento de ninguém. Porém, há o
que Sartre chama “projeto original”.
Como uma pessoa é uma unidade,
e não apenas um amontoado de desejos
ou hábitos sem relação, deve haver para
cada uma delas uma escolha
fundamental por um papel ou script de
vida, o qual dá o significado de qualquer
aspecto específico de seu
comportamento. Essa escolha nem
sempre acontece de forma consciente.
Saber sobre o “projeto original” de
alguém demanda cuidadosa análise de
sua trajetória existencial. Sartre
acreditava que não há nenhum deus e,
portanto, não há qualquer plano divino
que determine o que deve acontecer. Não
há um sentido ou propósito último
inerente à vida humana. Logo ela é
absurda.
Isto significa que o indivíduo foi
jogado de fato na existência sem
nenhuma razão real para ser.
Simplesmente descobrimos que
existimos e temos então que decidir o
que fazer de nós mesmos. O homem não
é mais do que aquilo que ele faz de si
mesmo. Se não há nenhum deus, não há
nenhum padrão objetivo de valores.
Consequentemente, devemos estabelecer
ou inventar, a partir da liberdade e
facticidade nossos próprios valores
particulares. Tal é o primeiro princípio do
existencialismo ateu de Sartre. Sem
diretrizes absolutas, nós devemos sofrer
a agonia de nossa tomada de decisão e a
angústia de suas consequências.
A angústia é, então, a consciência
da própria liberdade e a consciência da
imprevisibilidade última do nosso
comportamento. Sartre define como “má
fé” a tentativa de fugir da angústia
fingindo que não somos livres. Tentamos
nos convencer que as nossas atitudes e
ações são determinadas pela nossa
personalidade, horóscopo, situação ou
por qualquer outra coisa fora de nós
mesmos. Segundo Sartre, nenhum
motivo ou resolução passada determina o
que fazemos agora. Cada momento
requer uma escolha nova ou renovada.
Mesmo que não fizermos nada, uma
escolha já está sendo realizada: o não
agir.
Negar a liberdade é uma tomada
de posição covarde, a fim de fugir da
angústia da escolha, e achar o repouso e
a segurança na confortável ilusão de ser
uma essência acabada. Portanto, o
existencialismo se contrapõe ao
essencialismo, à medida que defende que
não somos determinados. Para essa
corrente filosófica, podemos nos
reinventar a cada momento. Inicialmente,
as ideias essencialistas se tornaram mais
expressivas que as ideias existencialistas
(Perdigão, 1995; Sartre, 2005 apud
Antunes, 2017).
Portanto, as primeiras
influenciaram mais as ciências biológicas
do que as ciências humanas. Logo, para
as ciências médicas e biológicas, assim
como todos os entes, homens e mulheres
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15. revista ex-isto no. 1 | p. 14
também possuem uma essência e
finalidade que serão manifestadas ao
longo da vida.
Os estudos queer se propõem a
compreender as práticas sociais que
organizam a sociedade como um todo
através da “sexualização”,
“heterossexualização”,
“homossexualização” de corpos desejos,
atos, identidades, relações sociais,
conhecimentos, cultura e instituições
sociais. Interrogação dos processos
sociais normatizadores que criam
classificações gerando a ilusão de que
existem sujeitos estáveis, identidades
naturais e comportamentos regulares
(Seidman apud Miskolci, 2009 apud
Antunes, 2017).
Para Miskolci (2009) apud Antunes,
(2017), a matriz essencializadora e
hierarquizadora criada pela sociedade
seria formada pela conexão entre etnia e
sexualidade. Nela há um nó que evidencia
o mesmo processo normatizador que
acaba criando seres considerados mais
humanos e menos humanos (seres
abjetos). Os seres humanos só se tornam
viáveis através de categorias socialmente
reconhecidas. Portanto, segundo tal
matriz essencializadora, travestis idosas,
são consideradas abjetas e invisíveis,
justamente por não corresponderem a
nenhuma categoria considerada viável e
às normas estipuladas.
A teoria queer desafia a sociologia
a não estudar mais aqueles que rompem
as normas, nem os processos sociais que
os criaram como desviantes. Ao invés
disso, insiste em focar nos processos
normatizadores marcados pela produção
simultânea do hegemônico e do
subalterno. Tais estudos se preocupam
em criticar os processos normatizadores.
Portanto, segundo Pelúcio (2009) apud
Antunes, (2017) os estudos queer,
procuram desvelar mecanismos de
naturalização e essencialização dos
termos e relações por eles significados.
Referência Bibliográfica:
ANTUNES, P. P. S. Homofobia
internalizada: o preconceito do
homossexual contra si mesmo. São Paulo:
Annablume, 2017.
Disponível em PDF:
https://tede2.pucsp.br/browse?type=author&
value=Antunes%2C%20Pedro%20Paulo%20Sa
mmarco&fbclid=IwAR1I0drxfNKO40FTTT7gks
WiCJhtmZTTYBEE2-R1TaRc8wgDOfEQ5Gf-zeI
Por Pedro Sammarco, psicólogo clínico
graduado pelo Mackenzie, com formação
em Gestalt-Terapia pelo Sedes Sapientiae,
especialização em Sexualidade Humana
pela USP, mestrado em Gerontologia e
doutorado em Psicologia Social pela
PUC-SP. É autor dos livros "Travestis
envelhecem" e "Homofobia internalizada:
o preconceito do homossexual contra si
mesmo", publicados pela editora
Annablume.
www.instagram.com/pedrosammarco
www.fb.com/pedrosammarcopsicologo
nov.2020 | ex-isto.com
16. revista ex-isto no. 1 | p. 15
Literatura
Um “demônio” trágico
A literatura russa nos legou
grandes escritores, dentre tantos deles
Fiódor Dostoiéviski (1821-1881) se
destaca como um dos mais densos
filosoficamente e psicologicamente.
Em sua obra “Os demônios”
encontram-se diversos personagens, um
deles me recordou o filósofo Friedrich
Nietzsche (1844-1900), o personagem
Aleksiei Kiríllov incorpora o apolíneo e o
dionisíaco da filosofia de Nietzsche e nos
remonta a uma tragédia grega antiga do
período pré-socrático.
Fiódor Dostoiévski
O personagem de Kiríllov é belo
porque trágico, trágico à la Sófocles
(497-405 a.C.). Kiríllov é um personagem
febril, que se consome em seus
pensamentos, num raciocínio constante
sobre suas ideias que o levará a um
destino trágico. Kiríllov quer provar que
Deus morreu! Grande missão este
personagem se impõe! Mas como, como
provar a morte de Deus? Em seu estado
febril Kiríllov decide que está disposto a
levar às últimas consequências para
tentar provar a inexistência desse “ser”,
deus.
Kiríllov raciocina: “...se crê, crê que
não crê. Mas se não crê, então crê que
não crê.” Não há saída, para Kiŕillov é
impossível deixar de acreditar em algo,
mesmo não crendo em nada se crê
sempre em algo, constata. A “salvação”
para seus dilemas, e seu trunfo enquanto
herói, é se matar por um ideal, matar-se
em defesa do Ateísmo, que ele diz
ninguém ainda o ter feito, ninguém se
matou em defesa da “não-crença” e ele
seria o primeiro! Grande constatação!
Matando a si ele demonstra a todos que
quem tem o poder sobre a vida, é ele, e
não Deus. Kiríllov almeja a independência
de sua existência, sem submissão a nada
transcendente.
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17. revista ex-isto no. 1 | p. 16
Esse “herói trágico moderno” -
assim como nas tragédias gregas antigas -
vence todas as circunstâncias colocadas
pela sua razão pela tragicidade de seu
ato, o suicídio. Seu ato é dionisíaco, pois é
a desintegração do “eu”, um somar com a
natureza, e também apolíneo por ser um
ato individual (principium individuationis)
mesmo que para dar término da própria
vida culminando numa tragédia. Como
afirma Roberto Machado em seu livro
Nietzsche e a verdade:
Para o herói trágico é necessário perecer,
por onde ele deve vencer.
(pág.38)
Kiríllov vence, por matar a si
mesmo em defesa de uma ideia, um
herói trágico que num ato de
autoconsciência encontra uma forma de
anunciar ao mundo que não é um deus o
mantenedor da vida, do mundo, o
homem tem poder sobre si mesmo de
dar cabo à sua vida justificado pela
“razão”, e nisso encontra sua consolação.
Eis a estranha consolação que proporciona
a tragédia: a certeza de que existe um
prazer superior a que acede pela ruína e
pelo aniquilamento do herói, da
individualidade, da consciência; pela
destruição dos valores apolíneos. (pág. 40
– Roberto Machado em Nietzsche e a
verdade).
Fica aqui o convite à leitura desta
obra literária excepcional. Lembrando
que as melhores traduções de
Dostoiévski no Brasil são da editora 34,
em especial dos tradutores Boris
Shnaiderman e Paulo Bezerra.
Por João Marcos, proprietário do Sebo
São Darwin, tatuador, interessado em
literatura, filosofia e história.
Sebo São Darwin:
www.facebook.com/saodarwin
www.instagram.com/sebo_sao_darwin
Tatuaisô:
www.instagram.com/tatuaiso
www.facebook.com/tatuaiso
nov.2020 | ex-isto.com
18. revista ex-isto no. 1 | p. 17
Galeria Independente
George Christian
George Christian é compositor,
multiinstrumentista e cantor, residente
em Salvador (BA), fortemente engajado
na produção e difusão de sua música
independente por distintos meios online,
tendo produzido diversos EPs e álbuns
lançados, utilizando como principal
instrumento o violão elétrico, juntamente
com explorações instrumentais.
Também atua como compositor de
trilhas sonoras, tendo em seu currículo os
filmes "Imagens", de Luiz Rosemberg
Filho, e a série "No Icons" (inédito), de
Alexandre Guena. Seus trabalhos
trafegam nos campos tanto da música
experimental, quanto da música de
concerto, realizando esporádicas
performances ao vivo.
A Era da Estupidez
Seu álbum mais recente, 'A Era da
Estupidez', é o álbum mais progressivo
em sua discografia. Trata-se de um
trabalho conceitual em que se observa,
paradoxalmente, uma narrativa que se
inicia como um lamento solitário e vai se
desdobrando num cataclisma ultra
psicodélico de timbragens ao observar a
estupidez no mundo.
O compositor se assume solista e
multiinstrumentista, onde o corpo da
improvisação e da composição
espontânea percorre contornos mais
estruturados e desafiadores. Das dores
secretamente autobiográficas às dores do
mundo ao redor. O álbum é um
manifesto contra uma época de
retrocessos éticos e um elogio à loucura
criativa.
Link para escutar o disco:
hamfuggirecords.bandcamp.com/album/
a-era-da-estupidez
George Christian:
georgechristianmusic.wixsite.com
instagram.com/gc.soundartifacts
fb.com/georgechristianmusic
nov.2020 | ex-isto.com
19. revista ex-isto no. 1 | p. 18
cotidiano / junho 2020
pastel seco em papel kraft
Galeria Independente é um
projeto do ex-isto que visa divulgar
artistas que produzem um trabalho
autoral, de caráter inventivo, crítico e/ou
libertário, que se relacione (de alguma
maneira) com as temáticas do
existencialismo, fenomenologia, filosofia
contemporânea ou psicologia.
Guto Nunes
instagram.com/gggguto/
O intuito desta galeria é gerar
visibilidade de artistas pouco conhecidos
pelos meios midiáticos de massa, que
atuam principalmente de maneira
independente, seja na música, pintura,
escultura, literatura, fotografia, cinema,
dança, teatro, história em quadrinhos ou
arte digital.
nov.2020 | ex-isto.com
20. revista ex-isto no. 1 | p. 19
Livro
O ser e o nada - Jean-Paul Sartre
“O Ser e o Nada” do filósofo
francês Jean-Paul Sartre é um grande
clássico do existencialismo, publicado
pela renomada Editora Vozes. Neste livro
encontramos reflexões sobre a
consciência, percepção, autoilusão,
existência e o livre-arbítrio. Um livro
robusto e de linguagem complexa, porém
indispensável para os interessados dessa
corrente de pensamento.
Influenciado fortemente por
filósofos como Martin Heidegger e
Edmund Husserl no uso do método
fenomenológico como ótica para explorar
o ser (ontologia), nosso autor configura
uma relação entre consciência e mundo
de maneira posicional, pois, consciência é
sempre consciência de algo e o método
fenomenológico é justamente aquele que
busca o fenômeno como ele aparece. A
aparência não é mera ilusão que esconde
a essência de algo, ao contrário, a
essência mesma é uma aparição.
Podemos rastrear também sua
dívida com Kierkegaard, quando o filósofo
francês escreve sobre a condição da
humanidade como radicalmente livre e a
relação dessa liberdade com a angústia.
O ser não é pré-determinado, sua
essência é uma construção, onde nos
autoafirmamos através de nossas ações
(escolhas), somos condenados a sermos
livres e por isso somos obrigados a
escolher, agir, a não escolha também é
uma escolha onde somos totalmente
responsáveis. Já a angústia jaz da
liberdade, “um sentimento inevitável de
profunda e total responsabilidade por
nossas próprias escolhas e ações”.
Constantemente tentamos fugir da
responsabilidade, e essa tentativa foi o
que Sartre chamou de má-fé, aqui
concentra-se as temáticas do engano de
si. A mentira implica que o mentiroso está
completamente a par da verdade, não é
um ignorante ou vítima de um erro, mas
sim tem uma consciência cínica
incoerente com suas palavras. A mentira
também pressupõe o “outro”, o
enganado. Já a má-fé compartilha muitos
aspectos da mentira, porém, não
pressupõe o outro: sendo assim uma
mentira para si mesmo. A má-fé é uma
“desagregação íntima no seio do ser”.
Por Kaíque Jeordhanne, bacharel em
Ciências Ambientais, idealizador do
projeto Ler e Despertar, onde faz
resenhas e oferece dicas de livros.
www.instagram.com/leredespertar
nov.2020 | ex-isto.com
21. revista ex-isto no. 1 | p. 20
Filme
A primeira noite de tranquilidade
Valério Zurlini foi um diretor de
destaque no cinema italiano nas décadas
de 50 a 70, mas de alguma forma, no
âmbito internacional, seu nome ganhou
menor repercussão que o de outros
cineastas. Talvez obscurecido pela
fenomenal repercussão que outros
cineastas do período alcançaram – Fellini,
Visconti, Antonioni... Mas certamente não
por conta de seu cinema ser algo inferior.
Zurlini dirigiu poucos filmes, mas alguns
deles, como “A primeira noite de
tranquilidade”, revelam seu talento para
retratar o estado de espírito de
personagens imersos em crises
existenciais e situações limites.
“A primeira noite de tranquilidade”
remete a uma passagem da obra de
Goethe, que ao final do filme irá revelar
seu caráter trágico. A história é centrada
no personagem de Daniele (Alain Delon),
um professor de literatura de meia idade
que fracassou em se mostrar a altura das
expectativas de sua família burguesa. Um
Delon derrotado, com olheiras e eterno
semblante de quem passou a noite em
alguma festa decadente entrega uma
atuação lapidar. Daniele parece ir de
cidade a cidade, de emprego a emprego,
sem qualquer desejo de chegar a algo ou
algum lugar. Seu currículo é cheio de
espaços vazios, e Daniele não está
minimamente interessado em explicar
tais ausências, assim como também
parece ter pouco interesse por sua
namorada deprimida. Numa Rimini
poética e melancólica – Zurlini oferece
belos takes da cidade no outono, período
em que transcorre a história – Daniele
tem sua existência maquinal e indiferente
agitada por um sentimento que há
tempos não o movia; o desejo. Ele é
despertado por outra personagem que
parece viver um impasse tão grande
quanto o de Daniele. A bela e triste
Vanina, a aluna adolescente que
demonstra interesse por suas aulas.
Daniele irá, é claro, se apaixonar por
Vanina. Mas para além da diferença de
idade e das relações sociais que irão
obstruir os planos de Daniele, há também
o fato de Vanina ser amante de um rapaz
envolvido com a máfia local e de ter um
passado tão complicado quanto o de
Daniele.
O filme se constrói pela força de
seus personagens. Além de Daniele e
Vanina, outras figuras interessantes
habitam essa história onde parece que
ninguém vai conseguir o mínimo de
satisfação em suas complicadas
existências. O filme lida com várias das
questões centrais ao existencialismo –
angústia, solidão, liberdade,
singularidades que ora aproximam, ora
afastam os indivíduos. “A primeira noite
de tranquilidade” versa sobre um mundo
onde impera a falta de sentido e sobre o
quanto nossas vidas são um tanto quanto
absurdas.
Por Graziela Maria Lisboa Pinheiro,
estudante de psicologia, mestre e
doutora em letras, graduada em
comunicação social e cinema.
nov.2020 | ex-isto.com
22. revista ex-isto no. 1 | p. 21
Diversos
O que é o esperanto?
Em poucas palavras, o esperanto é
uma língua planejada criada na intenção
de facilitar a comunicação entre pessoas
que falam línguas diferentes. A base do
esperanto foi iniciada pelo médico e
filólogo polonês Dr. Lázaro Zamenhof, em
1887. Desde então, o projeto de língua
planejada transformou-se em uma língua
viva, com cultura própria, mas
internacional, tendo até mesmo falantes
nativos.
Hoje podemos também dizer que
o esperanto é muito mais que apenas
uma língua inventada, atualmente, é uma
cultura rica e diversa que reúne pessoas
de várias partes do mundo, essa cultura
se mostra através de músicas, filmes,
redes sociais, literatura, teatro e outras
manifestações artísticas.
O esperanto não pertence a
nenhuma nação e pertence a todos
aqueles que, de alguma maneira, têm
contato com essa ferramenta
extremamente eficaz de comunicação
transnacional. Essa língua é culturalmente
cosmopolita, aquele está inserido na
comunidade esperantista, na maioria das
vezes, também tem interesse por um
mundo sem fronteiras e, principalmente,
sem barreiras linguísticas.
O livre contato e a facilidade desta
comunicação fluida, possibilita aos
usuários do esperanto total acesso às
mais diversas culturas. Tendo como
princípio fundamental à neutralidade, o
esperantista se assume como um cidadão
do mundo, totalmente integrado às
interações transnacionais.
O falante do esperanto tem a
oportunidade de se inserir em qualquer
grupo social, não impondo, de maneira
alguma, sua língua nacional, dessa forma,
tais indivíduos atingem uma aquisição
cultural plenamente efetiva. Tolerância,
respeito e cordialidade são alguns dos
principais valores cultivados no meio
esperantista.
Será um grande prazer poder
mostrar um pouco deste universo cultural
para você leitor da revista ex-isto.
Por Fábio Silva, licenciado em Letras pela
UFLA, pós-graduado em linguística
aplicada à educação pela Faveni, membro
da Liga Internacional de Professores
Esperantistas e é diretor da Embaixada
do Esperanto de Pouso Alegre.
www.linguainternacional.org
www.facebook.com/ambasadejo
www.instagram.com/esperanton
nov.2020 | ex-isto.com
23. revista ex-isto no. 1 | p. 22
Artigo
Fundamentos da psicoterapia
fenomenológico existencial
Bruno Carrasco
Resumo:
Este artigo tem como intuito apresentar
os embasamentos filosóficos e
metodológicos da psicoterapia
fenomenológico existencial: a filosofia
existencialista e o método
fenomenológico, destacando sua
particularidade no modo de encarar a
existência humana e de proceder o
processo psicoterapêutico. O
existencialismo oferece um olhar sobre a
condição humana enquanto algo não
definido, livre e responsável por suas
escolhas, e em constante transformação,
que se constitui em seu existir concreto
por meio de sua experiência singular, no
mundo, em constante relação com as
pessoas, objetos, espaços e consigo
mesmo. A atitude fenomenológica dispõe
uma abertura para as singularidades da
existência em seus modos próprios de se
manifestar, buscando compreender as
distintas características, interesses e
desinteresses de cada indivíduo, evitando
pressuposições ou conceitos prévios
sobre a pessoa, captando o modo como
esta se revela a cada encontro.
Palavras-chave: Psicoterapia,
Existencialismo, Fenomenologia,
Psicologia.
Introdução
O presente trabalho pretende
oferecer uma breve introdução sobre os
fundamentos filosóficos da psicoterapia
fenomenológico existencial, expondo
seus norteamentos teóricos, iniciando
com a filosofia existencialista e seu
entendimento sobre a existência humana,
e o método fenomenológico, que indica
atitudes e disposições para se aproximar
da existência em seus distintos modos de
se expressar.
Existencialismo é uma filosofia
contemporânea que encara a existência a
partir de sua manifestação concreta,
singular e afetiva, entendendo o ser
humano livre para fazer escolhas e
responsável por elas, sempre aberto a
novas possibilidades. A fenomenologia se
apresenta como uma atitude para se
aproximar das singularidades, do modo
como cada um se apresenta.
O intuito desta pesquisa é explorar
os pressupostos filosóficos e as teorias
que servem de embasamento para a
prática da psicoterapia fenomenológico
existencial. Pretende-se, portanto,
apresentar algumas questões do
existencialismo e da fenomenologia com
relação ao entendimento de ser humano,
e sobre o modo como proceder a análise
da existência humana, de acordo com
estas vertentes.
nov.2020 | ex-isto.com
24. revista ex-isto no. 1 | p. 23
A psicoterapia fenomenológico
existencial dispõe uma maneira específica
de encarar a existência humana,
entendendo esta como um processo e
não como algo fixo, mas sempre aberto à
transformações, sendo constantemente
afetada pela relação com as outras
pessoas, objetos e espaços, aberta a
novos entendimentos de mundo e de si.
O método fenomenológico possibilita
uma aproximação das singularidades e
da relação afetiva da pessoa com o
mundo, com os outros e consigo mesma,
compreendendo seus modos de ser e
suas vivências no mundo.
Este trabalho se inicia com a
descrição dos fundamentos teóricos,
filosóficos e conceituais da psicoterapia
fenomenológico existencial, com a
pretensão de oferecer uma introdução
sobre esta vertente de psicoterapia, que
por ser pouco conhecida, acaba sendo
erroneamente confundida com outras
tendências como a Abordagem Centrada
na Pessoa, de Carl Rogers, a
Gestalt-Terapia, de Fritz Perls, ou a
Psicoterapia Existencial Humanista, de
Rollo May.
Para a pesquisa foram utilizados
alguns dos livros mais destacados
publicados sobre existencialismo e
fenomenologia, juntamente com artigos
sobre os temas abordados. Essa
necessidade de voltar aos fundamentos
possui justamente o intuito de oferecer
um breve entendimento introdutório
sobre as bases para que se possa
compreender melhor sua proposta
psicoterapêutica na prática.
1. Existencialismo
O termo ‘existencialismo’ é
resultante da soma da palavra ‘existência’
com o sufixo ‘ismo’. Segundo Penha
(2014, p.11), a palavra ‘existência’ é uma
derivação do verbo existir, que se origina
do latim existere, cujo significado
corresponde a “sair de uma casa, um
domínio, um esconderijo. Mas
precisamente: existência, na origem, é
sinônimo de mostrar-se, exibir-se,
movimento para fora”.
O existencialismo enquanto
vertente de filosofia possui influências de
diversos filósofos, entre eles Sören
Kierkegaard (1813-1855), Friedrich
Nietzsche (1844-1900), Martin Heidegger
(1889-1976), e outros que contrariam boa
parte das bases da filosofia ocidental
desde a Antiguidade até a Idade
Moderna. Porém, foi por meio do filósofo
francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) que
esta filosofia se tornou popular. Sartre se
assumiu enquanto existencialista e
destacou o existencialismo como uma
filosofia do engajamento e da ação,
evidenciando a responsabilidade de cada
pessoa por sua existência.
Reynolds (2014) destaca entre os
temas fundamentais tratados pelos
existencialistas: a liberdade, a morte, a
finitude, a experiência fenomenológica, a
angústia, a náusea, o tédio, a
autenticidade e a responsabilidade.
Segundo ele, eventos como a Segunda
Guerra Mundial e a ocupação alemã na
França, possibilitaram um maior
questionamento sobre questões como a
nov.2020 | ex-isto.com
25. revista ex-isto no. 1 | p. 24
liberdade, a responsabilidade e a morte.
Segundo Penha (2014), o existencialismo
foi a corrente filosófica mais discutida
entre as décadas de 1940 e 1950.
No livro ‘O existencialismo é um
humanismo’, Sartre cita sua célebre frase
“a existência precede a essência” (2014,
p.18), argumentando que este é o
primeiro princípio do existencialismo,
complementando que “o homem nada é
além do que ele se faz” (2014, p.19).
Segundo ele, não há nenhuma definição
prévia sobre o ser humano com relação
aos seus modos de ser, de se relacionar e
de se colocar no mundo. Cada pessoa se
constrói na prática da vida concreta, na
relação com outras pessoas e por meio
das escolhas que faz.
Que significa, aqui, que a existência
precede a essência? Significa que o
homem existe primeiro, se encontra,
surge no mundo, e se define em seguida.
Se o homem, na concepção do
existencialismo, não é definível, é porque
ele não é, inicialmente, nada. Ele apenas
será alguma coisa posteriormente, e será
aquilo que ele se tornar. Assim, não há
natureza humana, pois não há um Deus
para concebê-la. (SARTRE, 2014, p.19)
O conceito essência, segundo a
tradição filosófica, refere-se àquilo que
seria previamente determinado, que
caracterizaria algo ou um ser antes
mesmo de sua existência concreta. Neste
sentido, a existência seria resultante
desta essência. A filosofia existencialista
se contrapõe a esta vertente
essencialista, entendendo a existência
como resultante da própria existência
concreta, e não de uma essência.
Foulquié (1975) apresenta o
existencialismo partindo de sua diferença
para com o essencialismo. Para ele, até o
século XIX o pensamento essencialista
prevalecia, e a filosofia não questionava o
primado da essência sobre a existência,
ou seja, partiam do entendimento de que
toda existência era fruto de uma essência
previamente definida.
Seja no mundo das ideias de
Platão, como nas categorias em
Aristóteles, ambos no século IV a.C., nas
essências da escolástica, na segunda
metade da Idade Média, e nas ideias
inatas de René Descartes, no século XVII,
todas estas filosofias priorizavam as
essências em detrimento da existência.
Uma tendência muito presente na
filosofia ocidental, desde Aristóteles, que
inclusive foi utilizada pela ciência
moderna, é olhar para as coisas partindo
das categorias que são estabelecidas
sobre elas de acordo com suas
semelhanças com relação a outras coisas,
e que inclusive as discrimina por suas
diferenças. Essa tendência de encarar as
coisas partindo de suas categorias
prévias, ao invés das experiências sobre
as coisas, nos dificultou a captação das
distintas particularidades sobre o que
percebemos, ou seja, de suas distinções e
singularidades.
O existencialismo surge, pois, como uma
teoria que afirma o primado ou a
prioridade da existência. Mas em relação a
que afirma este primado ou prioridade?
Em relação à essência. (FOULQUIÉ, 1975,
7p.)
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Para a filosofia essencialista, a
essência corresponderia a algo universal
contendo todas as características de um
ser, enquanto que a existência seria
apenas uma disposição para transformar
em ato tal essência, portanto uma mera
efetivação das essências prévias. O
existencialismo, pelo contrário, considera
a existência como prioridade, ao invés da
essência. Neste sentido, a existência não
é uma efetivação de uma essência
previamente definida, mas uma condição
que constitui justamente os modos de ser
e as características mais próprias de cada
pessoa, na relação com as outras pessoas
e com o mundo.
Como indica a própria palavra, o
existencialismo caracteriza-se sobretudo
pela tendência de colocar o acento na
existência. O existencialista
desinteressa-se das essências, dos
possíveis, das noções abstratas: situa-se
nas antípodas do espírito matemático; seu
interesse dirige-se ao que existe, ou
melhor, à existência daquilo que existe.
(FOULQUIÉ, 1975, 37p.)
Segundo Foulquié (1975), o
existencialismo também se coloca
contrário ao racionalismo e ao
positivismo, que priorizaram a razão e a
objetividade, respectivamente, em
detrimento da experiência. Contrariando
essas teorias sobre a existência humana,
a filosofia existencialista parte do
entendimento de que é impossível fixar
regras prévias para a existência e para os
modos de ser de cada indivíduo,
buscando olhar para as diferenças ao
invés das teorias ou generalizações.
No existencialismo, a existência é
concebida como um privilégio do ser
humano, não sendo algo pronto ou
previamente determinado, tal como
entendiam os filósofos essencialistas,
mas como um constante vir-a-ser, em
permanente transformação. Por não ser
definida previamente, a existência
humana é livre para fazer escolhas, pois
para existir precisamos, necessariamente,
escolher. Não escolhemos como e onde
nascer, mas podemos escolher o que
fazer diante das circunstâncias em que
estamos inseridos. É por meio da relação
que estabelecemos com os lugares, com
os objetos e com as pessoas, juntamente
com as escolhas que fazemos, que
constituímos nosso modo de existir.
(...) eu sou bonito ou feio, filho de
proletário ou de ilustre ascendência, chove
ou faz calor… diante destes fatos sou
impotente. Mas sou senhor de minha
atitude à respeito destas maneiras de ser,
independentes de mim: posso
orgulhar-me ou envergonhar-me delas,
aceitá-las ou insurgir-me contra elas. Eu
não as escolho, mas escolho a forma
como as considero, ou, no dizer dos
existencialistas, eu as assumo. (FOULQUIÉ,
1975, 46p.)
Essa liberdade de fazer escolhas,
segundo o entendimento existencialista,
não consiste em vivenciar momentos do
modo como desejamos ou esperamos,
mas escolher o que fazer diante das
distintas situações e adversidades que
atravessamos.
Para a filosofia existencialista,
todos somos livres para fazer escolhas e
direcionar a nossa existência a todo
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momento, de acordo com nossas
condições e possibilidades. Porém, não
temos nenhuma garantia sobre o que
pode acontecer por conta de um caminho
que escolhemos seguir, de modo que
toda escolha é um risco, e isso nos gera
uma sensação de angústia.
Por não termos uma essência que
nos defina ou que nos constitua
previamente, somos nós os únicos
responsáveis pelas escolhas que fazemos.
Isso nos torna responsáveis por nossa
existência, pela pessoa que nos
tornamos. A cada escolha que fazemos, a
cada momento que escolhemos, estamos
escolhendo a nós mesmos, a pessoa que
estamos sendo.
Mas se realmente a existência precede a
essência o homem é responsável pelo que
é. Assim, a primeira decorrência do
existencialismo é colocar todo homem em
posse daquilo que ele é, e fazer repousar
sobre ele a responsabilidade total por sua
existência. (SARTRE, 2014, 20p.)
Toda pessoa pode, em certo
sentido, e de acordo com suas condições
e circunstâncias externas, escolher o que
fazer de si mesma, a todo momento de
sua existência. O que não é possível,
segundo Sartre (2014), é não escolher. É
neste sentido que ele declara que “o
homem está condenado a ser livre”
(Sartre, 2014, 24p.), ou seja, a liberdade
não é uma opção, mas uma condição da
existência humana. Enquanto condição
implica em estarmos sempre escolhendo
o que vamos fazer de nossa existência.
Como não há uma essência prévia
que determine nossa existência e nossos
modos de viver, não há também nenhum
sentido previamente estabelecido sobre
como viver a vida. Essa constatação pode
parecer angustiante, mas é também
libertadora. Para o existencialismo, o
sentido da vida pode ser acolhido,
abraçado ou criado.
Sem a orientação de regras universais de
moralidade, da natureza humana ou de
um Deus cognoscível, que emitiu certos
mandamentos indiscutíveis (e várias
teologias podem acordar com isso),
devemos dotar o mundo de significado e
somente nós podemos fazer isso.
Devemos realizar este ato de fé: criar o
significado em que buscamos viver.
(REYNOLDS, 2014, 17p.)
A escolha que cada um faz sobre
sua existência é acompanhada, segundo
Kierkegaard, pelo temor e por uma falta
de tranquilidade, pois apesar de todas as
nossas avaliações e deduções racionais
sobre o que iremos escolher, nunca
teremos certeza de que uma de nossas
escolhas será como desejamos ou
esperamos, ou mesmo que será melhor
do que aquela que não escolhemos.
Neste sentido, toda escolha que fizermos
será sempre um risco, e cada escolha
implica na negação das outras
possibilidades de escolha.
Tanto em Kierkegaard quanto em
Sartre, a angústia consiste numa espécie
de medo de si, do que pode ser feito
diante de uma escolha, e da dificuldade
de se escolher, ao perceber-se o único
responsável por sua escolha, portanto
também responsável por sua existência.
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2. Fenomenologia
O termo ‘fenomenologia’ foi
utilizado por diversos autores, com
intenções distintas. Etimologicamente
significa o estudo ou a ciência dos
fenômenos, sendo os fenômenos aquilo
que aparece.
Do modo como hoje entendemos,
essa temática começa a aparecer entre o
final do século XIX e início do século XX,
com o filósofo e matemático alemão
Edmund Husserl (1859-1938), sendo
continuada e transformada por filósofos
como Martin Heidegger (1889-1976),
Jean-Paul Sartre (1905-1980), Maurice
Merleau-Ponty (1908-1961), entre outros.
Apesar de autores anteriores a
Husserl terem utilizado este termo, como
Hegel (1770-1831) ou Kant (1724-1804), é
com Husserl que a fenomenologia segue
um novo caminho, que irá influenciar a
filosofia, a psicologia e o modo de se
fazer ciências humanas no século XX em
diante, entendendo que “o sentido do ser
e o do fenômeno não podem ser
dissociados” (Dartigues, 2008, 11p.).
Partindo de um questionamento
sobre a ciência positivista e a filosofia
idealista, criticando o uso do método das
ciências naturais na psicologia e nas
ciências humanas, a fenomenologia
aparece como um contraponto e uma
nova perspectiva de se fazer ciência,
contrariando o entendimento objetivista
e as teorizações metafísicas, propondo
encarar as coisas tal como aparecem,
retornando ao mundo da vida.
Entre o discurso especulativo da
Metafísica e o raciocínio das ciências
positivas deve, pois, existir uma terceira
via, aquela que antes de todo raciocínio,
nos colocaria no mesmo plano da
realidade ou, como diz Husserl, das “coisas
mesmas”. (DARTIGUES, 2008, 18p.)
A fenomenologia é uma atitude
que busca encarar o fenômeno do modo
como este se mostra por si mesmo,
libertado de seus encobrimentos,
teorizações e interpretações. Trata-se de
um método que busca descrever os
fenômenos do modo como são
percebidos e experimentados, ao invés
de estabelecer teorias ou categorias
sobre o que se mostra.
Se apresenta, portanto, como um
método de acesso à experiência, que não
pretende encontrar razões metafísicas ou
descrever as coisas de maneira objetiva,
mas se aproximar do modo como
sentimos e apreendemos o mundo. Para
Cerbone (2012, 20p.), a fenomenologia
“está precisamente ocupada com os
modos pelos quais as coisas aparecem ou
se manifestam para nós, com a forma e
estrutura da manifestação”. Trata-se,
portanto, de uma busca da compreensão
das coisas como são captadas, do modo
como são captadas.
A fenomenologia tem por objeto as coisas
que se manifestam ou se mostram, tais
como se manifestam os fenômenos; neste
sentido, as coisas constituem aquilo que é
rigorosamente dado, aquilo que eu
encontro e que é, para mim, originalmente
presente. (...) É a filosofia do
inacabamento, do devir, do movimento
constante, onde o vivido aparece e é
sempre ponto de partida para se chegar a
algo. (LIMA, 2014, 12-13p.)
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O método fenomenológico é um
esforço para ir de encontro com as
experiências sem estar permeado pelas
especulações teóricas ou pressuposições
sobre elas. Por conta disso, não parte da
generalização teórica nem da abstração,
mas busca reconhecer e valorizar as
singularidades daquilo que é percebido,
observando a existência partindo de sua
manifestação singular.
Esta atitude é utilizada em
distintas abordagens de psicologia que
possuem como foco a subjetividade e as
emoções, como a Psicoterapia Existencial,
a Abordagem Centrada na Pessoa, a
Gestalt-Terapia, entre outras. Ao
contrário das abordagens objetivas e
interpretativas, busca-se aproximar da
pessoa atendida do modo como ela
experimenta suas vivências.
Trata-se, na verdade, de um “retorno”, um
caminho de volta, em que o “fim” nada
mais é do que o começo: “de volta às
coisas mesmas”, para citar a tão famosa
expressão husserliana. A fenomenologia é,
portanto, o caminho de volta às coisas
mesmas, ao mundo da experiência vivida
ou Lebenswelt (mundo-da-vida).
(STRUCHINER, 2007, 242p.)
Uma das críticas da fenomenologia
está relacionada ao uso dos métodos das
ciências naturais para os estudos das
ciências humanas. A fenomenologia
constata que quando olhamos para um
objeto qualquer, como uma pintura, o
que vemos não são as moléculas e ondas
de luz que atingem a nossa retina, tal
como entende a ciência positivista. Nós
estabelecemos uma relação com este
objeto, uma consciência intencional, de
modo que nos abrimos para a percepção
deste e o experimentamos como belo ou
feio, interessante ou desinteressante,
alegre ou triste, expressivo ou morno,
entre tantas outras possíveis experiências
que emergem dessa relação. Ou seja,
nossa captação de mundo não se trata de
uma mera relação objetiva, mas também
afetiva e valorativa.
Esta percepção é intencional, pois
resulta da relação entre a nossa
consciência, do modo como se direciona
para um objeto, e o objeto, do modo
como se apresenta a nossa consciência.
Porém, nunca captamos um objeto em
sua totalidade, o observamos sempre
partindo de um ângulo, de modo que há
muitos ângulos e variações possíveis, que
podem alterar a nossa percepção das
coisas e do mundo.
A consciência é sempre intencional, está
constantemente voltada para um objeto,
enquanto este é sempre objeto para uma
consciência; há entre ambos uma
correlação essencial, que só se dá na
intuição originária da vivência. A
intencionalidade é, essencialmente, o ato
de atribuir um sentido; ela é que unifica a
consciência e o objeto, o sujeito e o
mundo. Com a intencionalidade há o
reconhecimento de que o mundo não é
pura exterioridade e o sujeito não é pura
interioridade, mas a saída de si para um
mundo que tem uma significação para ele.
(FORGHIERI, 2019, 15p.)
O filósofo e psicólogo alemão
Franz Brentano (1838-1917) influenciou a
fenomenologia de Edmund Husserl,
especialmente com o seu entendimento
sobre a intencionalidade da consciência.
De acordo com Brentano, “todos os
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processos psíquicos seriam marcados
pela intencionalidade, ou seja, estariam
sempre dirigidos para um objeto” (Penna,
2001, 18p.). A experiência que tenho com
algo é apenas uma aparição possível
deste algo.
O interesse da fenomenologia não
é sobre a consciência ou sobre o objeto,
mas sobre a correlação entre ambos, que
surge da relação entre a consciência e o
objeto, deixando de lado qualquer
intenção de formular hipóteses ou
estabelecer inferências sobre o que é
percebido, de modo a permitir que o que
é percebido se mostre em seu modo de
aparecer.
(...) os filósofos tradicionais costumavam
começar por teorias ou axiomas abstratos,
mas os fenomenólogos alemães iam
direto à vida como a viviam a cada
momento. Deixavam de lado quase tudo o
que vinha alimentando a filosofia desde
Platão: enigmas sobre a realidade das
coisas ou sobre a possibilidade de
conhecermos com certeza alguma coisa
sobre elas. Esses fenomenólogos alemães,
em vez disso, ressaltavam que qualquer
filósofo que faça tais perguntas já está
inserido num mundo cheio de coisas —
ou, pelo menos, cheio de aparências de
coisas ou “fenômenos” (da palavra grega
que significa “coisas que aparecem”).
Então por que não se concentrar nesse
encontro com os fenômenos e ignorar o
resto? Não é necessário abandonar para
sempre os velhos enigmas, mas eles
podem ser postos entre parênteses, por
assim dizer, para que os filósofos possam
lidar com assuntos mais terrenos.
(BAKEWELL, 2017, 10p.)
Para proceder com o método
fenomenológico, é preciso praticar a
redução, ou a 'epoché', termo grego que
significa abstenção ou suspensão do
juízo, de modo que colocamos todas as
nossas suposições, hipóteses ou
imaginações entre parênteses. Isso não
significa eliminar as pressuposições, mas
deixá-las de lado, para se abrir ao que se
apresenta.
A redução fenomenológica
consiste em focar a atenção não nas
coisas, mas na experiência que
estabelecemos com as coisas, se
aproximando dos fenômenos tal como se
apresentam à consciência, despindo-se
de abstrações, ideias feitas, teorias e
hábitos. Neste sentido, fenômeno é tudo
aquilo que se apresenta à consciência,
seja este um objeto, uma situação, uma
imagem ou uma lembrança, real ou
imaginada.
O que é, então, uma xícara de café? Posso
definir a bebida em termos da química e
da botânica da planta, acrescentar
resumidamente como os grãos são
cultivados e exportados, como são
moídos, como a água quente passa pelo
pó e então esse líquido é vertido num
recipiente de determinado formato, para
ser apresentado a um integrante da
espécie humana que o ingere oralmente.
Posso analisar o efeito da cafeína no corpo
ou abordar o comércio internacional do
café. Posso encher uma enciclopédia com
esses fatos e ainda assim estarei longe de
dizer o que é esta xícara de café em
particular, à minha frente. Por outro lado,
se procedo ao inverso e invoco um leque
de associações puramente pessoais e
sentimentais. (...) essa xícara de café é um
aroma rico, ao mesmo tempo agreste e
perfumado; é o movimento indolente de
uma voluta de vapor erguendo-se de sua
superfície. Quando o levo à boca, é um
líquido que se move placidamente e um
peso dentro da xícara de bordas grossas
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