This eBook is part of the TREeBOOK Gallery, the (digital) tree of the eBooks. It was the first eBook created by Free Your Ideas, in 2006. The poetry is signed by Valeria Nobrega (1951-2007) and the photos by Kenia Ribeiro. To contact TREeBOOK please write to bia@freeyourideas.net TREeBOOK is supported by Free Your Ideas. www.freeyourideas.net. All rights reserved by the artists. Feel free to share this eBook. More info: http://www.freeyourideas.net
4. E agora que só restam os retalhos,
restam também meus poemas, dizendo do resto de mim.
5. Índice
06 Prefácio
07 Olhares 42 Infinitas lembranças
08 Sou bicho-Deus 43 Singular
10 Ipê amarelo 44 Cio de amor
11 Reação 45 Átomo
15 Desanoitecer 46 Medidas de segurança
16 Sol-s-tício 47 Equações
17 Uma só vez 48 Viagem
18 Despedida 51 Peito ferido
19 Chuvarada 52 Semente-sementeira
20 Nada mais resta 54 Acaso
21 Selva-geria 55 Terra de ninguém
24 Simbiose 59 Veleiro-vadio
25 Amigo 60 Fome de amor
27 Eterno partir 61 Cárcere
28 Morfologia 62 Vida circunscrita
29 Mecanismos 63 Aviso
30 Momentos mágicos 64 Deserto
33 Reforma 65 Gaiola
34 Albumina 68 Futurismo
35 Vagabundo 69 Caroneiro
37 Apenas canto 70 Telefone
38 Insanidade 71 Disneylândia
39 Água do céu 72 Natal
6. Prefácio
Ácida. Carne crua. Provocante.
Se fosse música, seria rock.
Se fosse filme, seria suspense, aventura, tragédia.
Se fosse autobiográfico, seria surpreendente...
Assim é a poesia de Valeria Nobrega.
Escrita ao longo de mais de trinta anos, somente agora é publicada
e, pasmem, continua tão atual quando na época em que foi escrita
tamanha a carga emocional embutida.
Sejam nobres ou não, a poesia tem a capacidade de despertar
sentimentos autênticos: amor, raiva, ternura, medo, euforia,
desespero, paixão, solidão...
É para isso que a poesia existe: para provocar (sentimentos).
A coleção Fala Sim comemora com seu primeiro volume essa
explosão de sentimentos em forma de poesia.
Para dar fôlego ao texto exuberante: flores aqui e acolá.
Flores coloridas, vibrantes e expostas. Flores de Kenia Ribeiro.
Elas acrescentam ternura e leveza ao texto, ao dia, à vida.
A combinação Floral de Phoenix é atraente aos olhos de quem busca
uma inspiração, um ponto de vista, uma provocação.
Impossível ler sem se emocionar. Impossível ver sem se emocionar.
Bia Simonassi
Business Art Marchand
7. Olhares
...E quando chegares,
Não sei se iremos nos apresentar,
Comumente...
Não sei se te sentarás,
Simplesmente...
Não sei se entenderás,
Facilmente,
Se eu disser a ti
Que no meu olhar de solidão,
Achei solidão no seu olhar também...
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
8. Sou bicho-Deus
No plantio, nessa terra, fui golfinho e naveguei
meses no lago de uma barriga...
No dia em que a luz se fez, desesperado com o
inesperado, aos gritos, senti frio, desproteção e
as agressões das ferramentas que me separavam
definitivamente daquela água-morna que me
alimentou e me embalou.
Respirei e o oxigênio fez dor em meus pulmões.
Encolhido, entendi que golfinho deixei de ser...
Enrolado em panos, descobri-me mamífero-filhote:
um gato, bezerro, ou, quem sabe, onça-pintada. Às
vezes, um chimpanzé imitando sons, mexendo as
mãozinhas, arrastando-me em quatro patas.
Fui crescendo!
Ouvindo!
Entendendo, percebendo!
Quase nada compreendendo...
O mundo foi tomando conta do meu ser e do golfinho
já quase nada me lembrava.
O tempo passou!
De bicho-em-bicho, fui transmutado em bicho-gente.
Quando o corpo-humano-adulto se moldou, minha
alma se fez fera e – leoa – me perdi na selva-selvagem
dos animais carnívoros!
Vez ou outra, no cantinho de um riacho, voava:
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
9. borboleta-livre e sonhadora. Noutras vezes - beija-flor -
plantava amor em corações sangrados por mágoas perfurados.
Leoa-mãe fiz nascerem outros golfinhos e neles identifiquei
minhas próprias mutações. Quando a vida de mim fez caça,
numa fera-fênix me auto-fecundei para parir na alma um
bicho alado e forte...
E descobri-me, finalmente, Semente-Eterna-Divina plantada
novamente na cartola-mágica dessa terra-mãe para repartir o
amor do Pai Celestial.
Bicho-Deus em transmutação de anjo cósmico da grande
morada ao lado do Criador, nosso Pai Eterno. Amém!
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
10. Ipê amarelo
Foi no teu amarelo-ouro,
De tristeza e solidão murmurantes,
Que eu descobri a vida,
Em meio à mumificação dos jardins,
No cerrado costurados.
Foi no teu amarelo-ouro,
Sustentado por galhos secos,
Que eu vi a tua esperança em vida,
O teu inconformismo na morte,
O teu grito de amor aos estéreis esqueletos inertes,
À pasmaceira do olhar que te descobre
... E por esse quase-nada
Descobre-se o que ainda-é-tudo.
Percebe-se que, apesar do cinza-mortalha,
Nesta terra alguém está vivo, em amarelo solar de energia!
...E por um quase-nada,
Apenas um ser em flor,
Solitário na grama cinza:
É preciso ser valente,
Fazer festa sobre as mortalhas,
Explodir em vida
A seiva divina da procriação perpetuadora,
Apesar...
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
11. Reação
Grita!
Senão o mundo massacra você,
Como massacra a britadeira as pedras inertes.
Fala!
Vomita as úlceras e hérnias,
Movimenta o corpo,
Antes que seu próprio sangue deixe de circular,
Antes que seus músculos parem,
Entorpecidos, alheios à translação.
Não pára!
“Se ficar o bicho pega”,
E correndo pode ser que escape.
Anda!
Levanta do macio ortopédico de cetim,
Tira o pé do chinelo aveludado,
Vai correr pelas calçadas,
Chutando no gramado uma bola sem compromisso.
Surfa na onda da vida,
Vencendo seu próprio medo,
E a inércia do cotidiano.
Arregala os olhos para o mundo
E vê o que ainda resta dele:
Dos seus jardins-lixo,
Das suas crianças-lixo,
Das cinzas nas matas:
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
12. Tudo carvão.
Abra os braços e espreguiça,
Arrota o comodismo hereditário,
Que o tempo está passando!
Enfrenta, fica gigante,
Ainda que para isso seja preciso
Agredir todos os contextos-monótonos
Do seu status social com suas estruturas burguesas.
Esqueça as programações tirânicas dos códigos mofados:
Abandona o sistema castrador,
Deixa seu cadastro-caduco,
Deixa de ser acessório da engrenagem consumista.
... E, por último, faça uso-capeão da sua ilha,
Toma posse de você!
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
15. Desanoitecer
...E agora que os fantasmas se vão,
Carregados pela madrugada,
Montados em copos e rótulos:
Já não sangra mais a ferida aberta,
Já não dói tanto a dor escondida.
Agora que o sangue jorrado
Misturou-se no riso,
Agora que o soluço sentido
Confundiu-se no canto dos cantos da rua.
Agora que os fantasmas se foram,
Posso ir-me também,
Só, com a minha solidão,
Só, como em todas as voltas...
[1976]
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
16. Sol-s-tício
O sol está morrendo
Em entretons de vermelho e laranja.
O dia está no fim
Para que a noite aconteça
Em luares de prata...
Pardais apressados procuram seus ninhos.
As árvores adormecidas, embaladas pela brisa que sopra suave,
Sobre a terra morna.
Ao longe, o piar de algum pássaro notívago,
Que, como eu, não conseguirá dormir,
Que, como eu, não achará seu ninho,
Não sentirá a brisa,
Não será embalado...
Ficará só,
Só,
Observando os que estão em paz,
Só,
Ouvindo o ressonar tranqüilo
Dos que ainda são felizes...
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
17. Uma só vez
Quem verdadeiramente amou,
Sabe que nunca mais de uma vez:
Porque a dor do amor
Nascido,
Sentido
E inexplicavelmente desaparecido
É intensa, grande,
E possessiva dos espaços e tempos.
Quem, n’alguma vez amou,
E deste amor naufragou:
Encolheu-se,
Escondendo-se
Na solidão abraçada.
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
18. Despedida
Pior que ficar
É ter que ir.
Aqui um resto de mim em tudo
Lá, só o relógio preguiçoso
Que não corre para a noite chegar.
“Felicidade” não foi embora:
Ficou em cada lembrança,
Disfarçada em saudade...
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
19. Chuvarada
A chuva ensopa a vidraça,
Onde tanto sol já bateu.
Curva as árvores,
Molha os pássaros,
Transborda os ninhos...
Por todo lado lama escorrendo,
Gente encolhida, sem vontade de nada...
Alma dormente, mente-dormente, fogo ausente...
É inverno!
Inverno nos jardins,
No céu e nas ruas.
É inverno lá fora,
É inverno em mim...
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
20. Nada mais resta
As lágrimas disparam carreira no meu rosto,
Onde o peito fez gigantescas crateras.
Tanto passado me alucina,
Tanta solidão me enlouquece.
Em minha rua deserta,
Nenhuma janela aberta,
Ninguém a me esperar...
Como ocultar
A dor em mim suspensa?
Como ocultar
Um coração intranqüilo,
Que morre de fome e sede
De lembranças inexistentes,
Agora que nada mais resta da paisagem
De grandes ilusões frustradas,
Agora que só resta o vazio
E a ânsia das palavras
Murmuradas ao vento...
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
21. Selva-geria
Mora em mim
Uma tristeza forte,
Constante e imutável.
Mora em mim
Uma fera devoradora,
Implacável e assassina.
Um bicho-grande
Que me amedronta,
Um bicho-mau
Que me apavora.
Mora em mim uma tristeza-fera
A me arranhar com as garras,
A me morder com as presas,
A me queimar com seu fogo.
Mora em mim
Um fantasma,
Uma força bruta,
Que me rouba o riso
E me carrega ao inferno:
A lágrima louca;
O grito rouco
Da solidão indomável.
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
24. Simbiose
Esta solidão, tão minha,
Eu a penetro
E por ela sou devorada.
Dentro de mim nós nos perpetuamos:
Ela me fecunda e eu a gero
Como o sol gerou a chuva
Como a chuva gerou o mar.
Coexistimos em proximidade
Nos infinitos opostos,
Que sem se tocarem
Se unem no além:
No inexplicável espaço
Entre o sol e o mar...
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
25. Amigo
Em um lugar qualquer;
Em sendo qual for a hora;
Vestido em cor preta ou branca;
Mesmo não sabendo usar pincéis;
Nem solfejar notas musicais;
Mesmo não dizendo poemas...
Em um lugar qualquer
Poderás fazer um amigo.
E a ele não interessarão os teus mestrados,
Nem a tua cultura e quinquilharias...
Porque não precisas de nenhuma técnica
Para conseguires amigos.
Terás apenas que saber ouvir,
Quando ele precisar falar,
E terás que falar no momento exato
Em que ele precisar ouvir-te.
Não precisarás ser puro, nem de todo impuro,
Mas não poderás ser vulgar.
Terás que ter ressonâncias humanas e siderais,
Quando todas as respostas dele forem cibernéticas.
E não precisarás saber do Picasso,
Dos noturnos e das “polonaises”;
Mas terás que senti-los,
Como sentes as gotas de chuva e de orvalho;
Como sentes o anoitecer,
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
26. O riso e o pranto.
Terás de ser adulto,
Quando ele disser “coisas infantis”;
E terás que ser criança para fazê-lo sorrir,
Quando ele estiver envelhecendo em preocupações.
Terá que ser tudo isto, e além de tudo,
Terás que lembrar-te de que não és máquina-programada,
E que por essa razão poderás errar um pouco,
Para talvez no momento da tua falha
Descobri-lo teu amigo também...
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
27. Eterno partir
Sou como a estrela parada e sem luz,
Num oceano de melancolia.
E tudo em mim busca amor
E não há amor em lugar algum...
Vivo um eterno partir,
Na minha vontade louca de ficar...
Se olho o céu, me sinto tonta
Com a quantidade de estrelas,
Fico cega, com tanta luz;
Acostumada que estou
Com o negrume cá debaixo.
E ao descobrir estrelas que se movem,
Descubro também que a vida continua,
Que o tempo não parou,
E que só em mim existe morte...
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
28. Morfologia
Não sendo capelo ou gaivota,
Não sendo soldado guerreiro,
Nem o Vietnã conhecendo,
Não sabendo dos horizontes distantes,
Não sendo muito tubarão,
Nem tão pouco piabinha;
Perco-me nas entrelinhas,
Sem definição dos espaços,
Sem tempo marcado,
Nas marcas de amor...
Históricas crateras,
De extintos vulcões em geografia distinta
Na mutilação morfológica...
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
29. Mecanismos
Penso, logo existo!
Mas não existo só porque penso.
Máquinas não pensam e existem!
Condicionadas pela precisão mecânica:
Eu condicionada pelos condicionamentos
Mecânicos-psicológicos.
Alimento as máquinas
E elas mesmas me alimentam.
O corpo da máquina é como meu corpo:
Que se alimenta, se cansa e um dia
Deixa de funcionar.
A meu favor
Apenas a opção da autodestruição.
Do querer desligar porque tenho frio, calor ou sono.
Do poder deixar a máquina,
E fazer o cérebro viajar,
E transpor em tempo e espaço
As correntes aprisionadoras:
Capazes de conter máquinas,
Porém nunca a mente livre.
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
30. Momentos mágicos
Existem momentos mágicos
Eternos...
Existem momentos cristalizados
Em tão pequenas lembranças...
Existem momentos viajantes do tempo
E do espaço
Momentos posseiros dos nossos pensares
Cravados nos ponteiros deste relógio neurológico,
Marcando este tempo de solidão...
Eu tenho estes momentos,
E deles sou escrava
Querendo escravizar você!
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
31.
32. E ao descobrir estrelas que se movem,
descubro também que a vida continua.
33. Reforma
Da tua estrada faço minha viela,
Se do meu atalho fizeres estrada
... E planto margaridas e violetas,
Onde fizestes existir asfalto e concreto
... E rabisco poemas em cima dos teus extratos bancários.
... E troco teu DVD
Por um dedilhar de viola,
Teus projetos racionais,
Por um bilhete de amor.
... E destruo as marcações da pista pavimentada
Para dar-te a liberdade
Das tuas próprias limitações,
Que também são minhas,
Em contextos opostos...
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
34. Albumina
Preciso que ressurjas em mim, agora
Como a fé nos desesperados surge.
Para que eu possa
Levar uma gota de orvalho
Desta terra amaldiçoada,
Onde só em ti
Me encontrei
Quando sem ti já nada mais importava.
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
35. Vagabundo
Louco vagabundo da noite,
Rouco Romeu – trovador
Sua boca eu apenas escuto
Pois embora seja vacinada
Sua mordida não me morderá!
Poeta dos substantivos
Femininos plurais,
Não faça mais versos aos nomes
Pois são apenas os rótulos,
Dos conteúdos
Que você não percebe.
Ah, jovem narciso
Quanto vazio por traz desse espelho,
Quanta solidão debaixo daquela cama,
Quanto automatismo no abater das lebres.
A sua disritmia,
Que a tanta mulher enlouquece
É a mesma da qual queria você isentado.
Acorda esta cabeça,
Faz descansar seu sexo-viciado
Faz acordar seu sentimento!
Pára de criar fantasias,
De sonhar utopias,
De fazer alegorias.
Deixa de ser o rei momo
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
36. Para na veste de um pierrô
Ser apenas um figurante
Da sinfonia global.
Louco homem, eu, mulher louca também,
Velha guerreira das dores,
Por uma questão estratégica
Vou aumentar nosso espaço
E me fazer disparar no vento...
Adeus!
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
37. Apenas canto
Canto uma esperança desatinada,
Canto uma paz que não tenho...
Canto como louca,
Enquanto meu peito chora num soluço, a dor da solidão.
Ah! Se soubessem o que vai em minha alma,
Ah! Se soubessem de mim,
Na certa zombariam,
Na certa se afastariam:
Por isso canto:
Para que não saibam do choro fantasiado de canto...
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
38. Insanidade
Nas noites insones do meu cansaço vadio;
Na solidão do silêncio irritante, estático e profundo;
Agredida pelo luar que estupra as cortinas exigindo passagem;
Pairando nos espaços de tempos antigos, em monólogos estéreis;
Na magia macabra das dores guardadas;
Ressoa no ar um grito esganiçado,
Erguendo da cama
O corpo trêmulo da mente confusa:
Porque as paredes se movem e o teto, num bailado convulsivo,
Flutua em espaços abertos de horizontes purpúreos.
Porque os livros enfileirados na prateleira poeirenta
Entoam canções natalinas para os duendes risonhos que
pululam nas jarras,
Porque tudo enlouquece numa mutação incompreensível...
E quem foi já não é mais,
Quem quis ficar teve que ir,
Quem era mudo, falou,
E quem objetos usava, virou objeto agora.
Para ser usado também...
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
39. Água do céu
Como aquela árvore
Ou como aquela flor,
Há dias que te esperava.
E chegastes na luz dos raios, no barulho dos trovões
Voltastes a mim,
E me encontrastes como na última vez:
Só, na vidraça embaçada a esperar.
Me sinto em paz,
Sem angústia,
Sem solidão,
Agora que tuas gotas molham as árvores e o vidro...
Por que demorastes a vir?
Eu aqui esperando para uma conversa,
Para não me sentir tão sozinha, valsando em espera.
Ficarás por um momento,
E conversaremos:
De poesia, madrugadas e estrelas...
Entrarás pela janela aberta inundando meu corpo,
Molhando os meus cabelos.
Entre, chuva,
Vem fazer cachoeira em mim...
[18 de outubro de 1973]
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
42. Infinitas lembranças
Não se esqueça...
Não se esqueça dos meus rios,
Minhas matas
Minhas grutas
Não se esqueça...
Dos gemidos,
Dos voares em céu aberto
Não se esqueça de nada.
Não deixe a saudade acordar.
Não programe nada.
Não defina.
Não equacione.
E, principalmente:
Não multiplique, não some,
Nem divida.
Apenas não se perca no espaço,
Apenas não se esqueça de mim
Apenas,
Nos deixe existir...
[19 de julho de 1979]
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
43. Singular
Eu,
Solidão
Bicho-fera
Ilha:
Em espaço – isolada
Eu,
Pedaço
De dimensão-programada
Em infinito deserto.
Eu,
Noite de inverno
Vazia – calada!
Eu,
Primeira pessoa
Do singular nós
Eu,
Monossílabo!
43
Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
44. Cio de amor
É neste cio de amor
Que te procuro
Madrugada morrendo
Morrendo de solidão:
Louca vontade
Rouca de beijos
Rolando no tempo,
Morrendo na insônia
Acampada nos lençóis...
Na mesma cama de ontem...
44
Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
45. Átomo
Um ponto branco,
Branca areia contra o mar
O sol me toca
E eu nada mais sou que um ser
Possuído pela grandeza cósmica...
Quando a escuma me beija,
E em bolhas lambe os meus pés,
Eu me entrego com indolência e passividade...
E na lentidão compassada dos seres cósmicos
Imensos, eu aprendo a possuir,
Sem me apossar,
Sem deixar de ser
Nada mais que um ponto:
Só, na areia fria!
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
46. Medidas de segurança
Mantenha a porta fechada:
Não deixa entrar
Nenhum amor por descuido:
Não deixa acampar.
Cerca suas terras
Com cercas de arame,
Tranca as janelas,
Não deves se arriscar.
Mantenha a porta fechada
Esquece da vida:
Não vale tentar.
Percorra as noites, os dias: sozinha.
Engole o sorriso, o pranto,
E mesmo sem encanto
Fique no seu canto.
Até a dor se acalmar....
(1979)
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
47. Equações
Para que placas, leiloando
Alardeando publicamente, vendedores.
Para que prados, pradarias, formalizados
Para que praias, lamentando pranto:
Quartzo prateado.
Para que prateleiras, fragilmente presas:
Predestinadas.
Para que prece, proferida, irrefletida:
Determinada.
Por que prazo,
Calculado?
Possível antecipação:
Precipício,
Matrix!
47
Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
48. Viagem
... E porque
Não moras no mar
Terei que esperar pela chuva,
Para na enxurrada da rua,
Chegar à tua calçada.
Pra quem sabe
Fazer-te estrada,
Embora
Prefiras vielas...
48
Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
49.
50. E porque não moras no mar,
terei que esperar pela chuva.
51. Peito ferido
E te amo
Numa loucura tão insana,
Tanto insano se fez o coração
Te amo
Te quero
E preciso de tudo
Que me mostras agora
Para depois
Esconder nalgum poço
Todo o medo
Desta loucura
E preciso esquecer
Que me fiz máquina
Pra sendo tua
Perder o medo,
E te amar longe das delimitadas-limitações...
51
Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
52. Semente-sementeira
Acho que foi o vento,
Ou talvez a maré
Que trouxe um dia
A plantinha nova:
Semente,
Pra junto da velha planta:
Sementeira
... Sei lá, se foi a surpresa do encontro
Sei lá, se foi o chegar sem licença
Naquelas terras tão próprias.
Quis a semente
Ser sementeira,
Sementeira
- semente.
Nesse querer de mutualidade
Semente – sementeou
Sementeira – semeou
Semente
Ensinando sonho
Sementeira
Sem sonho ensinou
E juntas pensaram que
Bom seria
Se o vento fosse dormir
E a maré aquietasse...
52
Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
53. Que bom seria
Tivesse a semente
Ser sementeira sempre
Não tivesse a sementeira
Semear-estéril...
53
Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
54. Acaso
Olha, moço
Sabemos que foi sem querer,
Ou talvez,
Por querermos demais
Sabemos um montão de coisas
E ao mesmo tempo,
Sabemos um montão de nada
E sei também
Que você não sabe,
Que na minha embriaguez
De desamor
Você fez acontecer
Uma vontade doida de amar,
Uma sede enorme de você...
54
Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
55. Terra de ninguém
És a gaia,
Da crosta fingidamente estéril.
És a cabeça-viking,
Desse coração italiano,
Dessas manias piratas
És o solo
A se satisfazer com os ciganos
Que em ti acampam, pra uma noite de festa
És a terra,
Que frutificou em vão,
Sem da colheita receber a sombra
És o canteiro,
Que recusa a semente
Pra dela não ser privado.
Que recusa o posseiro,
Pra nele não se subjugar.
És terra de ninguém
Sem ninguém para te cultivar
... E quando os ciganos se forem,
Deles só restando cinzas e ecos de gargalhada
Talvez, de tuas entranhas não possa mais brotar
Ao menos, a semente última.
Talvez, o olhar as fogueiras que um dia
Te fizeram arder, te faça chorar num repente
Pelas sementes que te negastes a receber
55
Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
56. ... E descobrirás, então, que por algumas
Colheitas perdidas, perdestes também a tua
Própria razão de existir.
E te descobrirás verdadeiramente mumificado:
A terra em todas as camadas, estéril!
(1978)
56
Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
57.
58. Acorda esta cabeça, faz descansar seu sexo-viciado,
faz acordar seu sentimento!
59. Veleiro-vadio
Era um mar imenso:
- fechado
Rodeado por montanhas:
- fechadas
E barco nenhum era permitido
E pássaro nenhum sobrevoava...
Mas o veleiro chegou:
- aberto
No espanto da fera só,
As ondas
Quedaram-se:
- quietas...
Dias e noites, veleiro e mar naquela
Dança medrosa, de ritmo lento,
Se conhecendo, se devassando,
Parados no tempo, se prometendo...
Hoje, velas abertas,
O veleiro se vai...
No mar, as ondas se escumam num
Beijo final
Nas montanhas, as matas-molhadas soluçam,
Pedindo que os ventos se calem,
Que façam o veleiro ficar...
[1979]
59
Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
60. Fome de amor
Se eu me tivesse,
Eu não me deixaria ser assim consumida,
Não teria essa alegria sumida
Não seria este ser sem jeito.
Se eu me tivesse,
Não teria este útero bêbado,
Embriagado de desamor.
Não teria esta garganta seca,
Em grito, morta-esquartejada;
Este peito mudo, surdo e incompetente
Esta fome doida,
Incontida.
Esta fome velha,
Imutável.
Esta fome de você,
De amor, murmúrios e risos.
Esta fome me devora:
Suga meu sono
Come minha fome
Dorme comigo,
Quando acordamos,
Um cigarro nos lábios
Nos faz sentir beijando você.
Se eu me tivesse,
Na certa teria você...
[28 de julho de 1980]
60
Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
61. Cárcere
Quem és tu, pesadelo humano;
Destruidor mutilante de ideais filosóficos;
Carcereiro do espírito,
Semeador de ervas malfazejas?
Quem és tu, fantasma umbilical;
Carniceiro noturno dos pensamentos fugidios?
Não vês, por acaso, que já destruístes bastante;
Não percebes que agora só restam os restos;
Que nada mais encontrarás para teus banquetes
alienados?
Quem és tu, pesadelo humano?
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
62. Vida circunscrita
Pensando,
Matutando,
Ensimesmando...
O olhar parado, perdido em algum horizonte;
Os braços caídos, inertes ao longo do corpo;
Os pés descalços, pendurados na amurada;
Os cabelos esvoaçando ao vento dos pensamentos distantes...
Tanto tempo, caminhos e gente;
Tanto acontecer;
Tanto andar...
E agora a idéia da estrada em círculos
Imutáveis sufocantes.
No círculo de círculos infindáveis, os mesmos medos,
As mesmas angústias, o mesmo posicionamento contrário.
Pensando,
Matutando,
Ensimesmado,
Sufocando-se em perguntas,
Angustiando-se nas respostas.
O corpo parado, inerte e estático.
A mente agitada e confusa
Debatendo-se
Nas paredes do crânio...
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
63. Aviso
Não se aproxime:
Se seus olhos não forem horizonte,
Se sua boca não salivar amor,
Seu peito não rufar sonhos.
Não precisa chegar, nem passar, nem olhar:
Se o sêmen não ejaculado semear esperança
De plantios, colheitas,
Gosto de favo e de mel.
Dispenso seu esqueleto-ôco,
Sua íris mortiça,
Seu peito calado,
Sua boca seca.
Dispenso seu pedaço,
Porque preciso do inteiro...
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64. Deserto
Agora, nesta rede calada,
As folhas paradas:
Não resta ninguém...
A lua dormente passeia no manto,
Procura meu canto,
Encontra meu pranto:
Não resta ninguém...
Chega o sol atrevido
Invadindo o silêncio,
Lambendo a dormência.
Remexe em tudo,
E tudo é um nada:
Não resta ninguém...
O mar beija a areia fazendo escorrer as pegadas,
Roubando as marcas
Da trilha de volta do meu pescador
Na rede inerte, enxarcada de solidão
Uma mulher se esvai
Em hemorragia
De pranto final,
Solitária:
Não resta ninguém!
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
65. Gaiola
Na noite escura, parada e deserta,
Paira no ar um grito incontido,
Abortado num choro de mágoas envelhecidas,
Estraçalhado em desejos rompidos,
Embrutecido nas dores revividas...
Na noite cansada, muda e inerte,
Como pássaro noturno, engaiolada:
De asas partidas, peito ferido, bico quebrado,
Esvoaçando prisioneira na gaiola de prata,
Com cadeado na porta...
Nas angústias de ontem,
No desespero de hoje,
Na incerteza do amanhã;
As neuroses adquiridas, decoradas e repetidas,
As manias insolentes, inoportunas e chatas,
As carências aumentadas e multiplicadas...
Na noite escura, parada e deserta,
O pássaro doente se acomoda no ninho vazio.
Cansado da vida,
Cansado do seu cansaço imutável,
Cansado dos contextos impostos,
Sem horizontes,
Sem abertura...
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67. Não se aproxime se seus olhos não forem horizonte, se
sua boca não salivar amor, seu peito não rufar sonhos.
68. Futurismo
Choro lágrimas sobre o cadáver ainda morno,
Desse passado adolescente.
E no meu ser todas as agitações se anulam,
Como as vozes nos campos moribundos.
Nesta rua, agora deserta, a minha alma passeia,
Desolada;
Porém vagueia serena.
Tão serena quanto só pode ser quem se sente só,
Como os veleiros nos portos silenciosos.
Preciso que surjas em mim,
Como a fé nos desesperados surge
Para que eu possa levar uma gota de orvalho,
Deste oceano de água e sal.
Preciso de ti agora,
Que só ficou o vento frio a soprar nas minhas faces
E a terra inerte a escorrer nas minhas mãos.
Preciso que surjas agora,
Quando tudo é estranho e silencioso, como um gemido,
Quando estou acorrentada por mim mesma,
À terra que sou eu mesma...
Quero me abandonar a ti,
Como a onda se abandona ao mar:
Silenciosa, com lassidão...
Pra fazer do passado uma lembrança envelhecida...
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69. Caroneiro
Surgiste na vida, repentinamente,
Sem acontecimentos diferentes,
Sem velas, sem vinho, sem guitarra...
Surgiste em mim,
E eu pensei que serias passageiro,
Que acabarias logo.
Que serias só por instantes,
Que nos separaríamos depois,
E nunca mais nos encontrássemos.
Mas saiu tudo diferente.
Foste ficando,
Me ensinando a gostar,
Me ensinando a te querer mais,
Por um pouco mais...
A culpa foi tua que mentiste.
Também minha, porque acreditei.
Sorte tua que me ganhaste.
Azar o meu que te perdi,
Depois de acreditar
Que serias pra sempre...
Azar o meu...
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
70. Telefone
Na nebulosa incômoda do teu rosto escondido,
Na estranha distância de tanta proximidade,
No querer conhecer a matéria dessa energia sonora.
Na hipótese de um muro,
Erguido ao acaso dos condicionamentos sociais,
Impostos, aceitos e desfrutados;
A minha inquietude se faz presente
Nos raciocínios balanceados,
Nas neuroses escondidas dos sonhos massacrados...
Na nebulosa incômoda das verdades escondidas,
Uma possibilidade de fuga,
No extravasamento dos desejos contidos,
No fundo do poço escondidos...
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71. Disneylândia
Se eu fosse a Mônica,
O Cebolinha ou o Mickey,
Você viria mais cedo
Pra ficar comigo.
Mas por não ser nenhum deles
Fico aqui jogada num canto,
Mais parecendo o Pateta.
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72. Natal
Nas árvores enfeitadas,
No movimento das ruas,
Nas mesas fartas:
Está escrito Natal!
Só não o vejo em mim, em você,
Nem nas pessoas agitadas que passam correndo.
Não vejo nenhuma ajuda ao cego que atravessa a rua de crianças e
velhos vestidos de fome, frio e abandono....
O que vejo bem são os doentes dos hospitais
A esperarem em vão um abraço apertado, a dor apartada..
O que sei é que nos asilos e orfanatos,
Nos casebres e abrigos
esperam um Papai Noel que não virá: nunca passou, nem ficou...
Ah, Natal!
Você me disse que hoje se comemora o nascimento de Cristo...
Como descobri-lo nas pessoas apressadas que me empurram ao passar,
Como descobrir o Natal em você que se fez dono da festa de aniversário
Para afogar-se feliz, no vinho, nas castanhas e nos presentes.
Como achar Natal em mim,
Se desconheço o perdão,
Se vejo erros e não faço acertos,
Não conserto nada,
Nem mesmo, eu mesma.
Nas árvores enfeitadas para o Natal,
A minha oração aos que nos brancos quartos de hospital,
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
73. O sangue injetado de drogas,
Rezam pela graça de sua cura,
Por um sonho infindo só de esperanças acalentado...
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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega
74. Livro composto nos tipos
NuSwift e Pristina.
Versão impressa para presente
pode ser encomendada pelo
bia@projectsim.com
Nossa missão é ajudar
pessoas [físicas e jurídicas]
a transformarem idéias em
projetos e projetos em real ação
[ou realização].
Nosso negócio é lidar com idéias.
Agradecimentos especiais para
Biagio Beatrice e Alexandre
Brandão pelo apoio técnico.
Todos os direitos reservados.