Este documento discute duas decisões divergentes do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) sobre a aplicação da cláusula geral antiabuso (CGAA) em casos semelhantes. Analisa um processo no qual a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima resultou na alienação das ações e na eliminação do imposto devido. As decisões do CAAD divergiram sobre se a CGAA poderia ser aplicada nestes casos.
Olhares divergentes da jurisprudência CAAD sobre a aplicação da CGAA
1. 24 CONTABILISTA 215
COLABORAÇÃO ISCAL
O
direito à liberdade de ges-
tão empresarial, tendo
como corolário o princípio
da autonomia privada, na vertente
de liberdade de iniciativa económi-
ca e empresarial encontra-se cons-
titucionalmente reconhecido nos
art.º 61.º, art.º 80.º, al. c) e art.º 86.º
da Constituição da República Por-
tuguesa (CRP). Integra este acervo a
liberdade de planeamento fiscal, de
escolha de forma societária, de or-
ganização da empresa, da forma de
financiamento, do local da sede da
empresa, afiliadas e estabelecimen-
tos estáveis, entre outras.
Por sua vez, o art.º 103.º da CRP es-
tabelece como fim do sistema fiscal
a satisfação das necessidades fi-
nanceiras do Estado e demais en-
tidades públicas no quadro de uma
repartição justa do rendimento e da
riqueza criados, cuja administra-
ção e liquidação foi atribuída, pelo
Olhares divergentes da
jurisprudência CAAD sobre
a aplicação da CGAA
A discussão e reflexão crítica relativamente à aplicação da cláusula geral antiabuso (CGAA)
mantém-se atual. Este trabalho analisa duas orientações divergentes que resultaram de decisões
do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) relativamente à mesma factualidade.
Por Joana Silva*, Sara Ferreira Pinto* e Tereza Guia Arraiano* | Artigo recebido em janeiro de 2018
Decreto-Lei n.º 118/2001, de 15 de
dezembro, à Autoridade Tributária
e Aduaneira (AT).
O princípio da livre disponibili-
dade económica das empresas que
concretiza a ideia de Estado fiscal
obsta que a autoridade fiscal limi-
te ou balize as opções jurídicas do
contribuinte. Sucede, porém, que
não obstante o Estado reconhecer
a livre conformação fiscal dos indi-
víduos para que estes planifiquem a
sua vida económica não desconsi-
dera as suas próprias necessidades
financeiras nem a necessidade de
assegurar a desejável manutenção
do princípio da neutralidade, de
modo a garantir, designadamente,
a equilibrada concorrência entre as
empresas, reprimindo os abusos de
posição dominante e outras práticas
lesivas do interesse geral.
Portanto, as liberdades de inicia-
tiva e de empresa não são direitos
absolutos podendo ser limitados
especialmente se a vantagem fis-
cal de um comportamento co-
loca em causa e/ou contraria a
totalidade do ordenamento jurí-
dico-tributário como sistema de
partilha de encargos tributários,
como seja, a ocultação de factos
ou valores que devam constar de
livros de contabilidade ou de de-
clarações fiscais, a obtenção de
reembolsos de tributos indevidos,
ou a existência de negócios simu-
lados, quer quanto ao valor quer
quanto à natureza.
Com vista a combater a fraude e
evasão fiscal os Estados têm toma-
do medidas legislativas através de
vários mecanismos legais, entre os
quais a cláusula geral anti-abuso
(CGAA), prevista no n.º 2 do artigo
38.º da Lei Geral Tributária (LGT).
Num tempo em que escasseiam
recursos para suportar um Esta-
2. FEVEREIRO 2018 25
COLABORAÇÃO ISCAL
do fiscal que se tem revelado des-
perdiçador e ineficiente face a uma
economia cada vez mais digital e
uma sociedade cada vez mais des-
materializada, não obstante ter sido
largamente debatida na doutrina, a
discussão e reflexão crítica relativa-
mente à aplicação da CGAA mantém
a sua acuidade e atualidade, pelo que
nos debruçaremos sobre duas orien-
tações divergentes que resultaram
de decisões do Centro de Arbitragem
Administrativa (CAAD) relativa-
mente à mesma factualidade, anali-
sando os aspetos mais relevantes da
mesma, refletindo sobre os mesmos
com as ilações devidas.
A problemática em análise:
autorização de aplicação da CGAA
Com vista a expor a problemática
que estamos a analisar, iremos re-
correr a três processos do CAAD,
nomeadamente o processo n.º
47/2013-T, o processo n.º 51/2014-T
e o processo n.º 131/2014-T.
Atendendo a que os processos sobre
os quais recaem esta problemáti-
ca são extremamente semelhantes,
seguiremos o processo n.º 47/2013-
T, como exemplo dos restantes.
De uma forma geral, estamos pe-
rante uma transformação de so-
ciedades por quotas em sociedades
anónimas, a qual resulta na con-
sequente alienação das suas ações,
a existência da CGAA, sendo que o
ato de transformação societária se
tornou ineficaz, originando assim
que o requerente pague a liquidação
contestada a 18 de janeiro de 2013.
Caracterização da CGAA
A Lei n.º 87-B/98, de 31 de dezem-
bro, aprovou o Orçamento do Es-
tado para 1999 na qual a CGAA fora
introduzida na legislação portu-
guesa pela primeira vez. Contudo,
esta primeira abordagem não se en-
quadrava adequadamente, devido
à sua falta de preparação e estudo
prévio, o que resultou na sua não
aplicação.
Após algumas alterações, aquan-
do a reforma fiscal de dezembro de
2000, através da Lei n.º 30/2000,
de 29 de dezembro, a CGAA fora
alterada, passando assim a ter a
seguinte redação, no art.º 38.º, n.º
2 da LGT: «São ineficazes no âm-
bito tributário os atos ou negócios
jurídicos essencial ou principal-
mente dirigidos, por meios artifi-
ciosos ou fraudulentos e com abuso
das formas jurídicas, à redução,
eliminação ou diferimento tem-
poral de impostos que seriam de-
vidos em resultado de factos, atos
ou negócios jurídicos de idêntico
fim económico, ou à obtenção de
vantagens fiscais que não seriam
alcançadas, total ou parcialmente,
Figura 1.1 - Cronologia dos acontecimentos do processo nº47/2013 - T
evitando a tributação das mesmas.
Como podemos observar na figu-
ra 1.1, a 31 de julho de 2008 foi ce-
lebrado um contrato-promessa de
compra e venda de participações
sociais entre os sócios da sociedade
comercial por quotas “A” e a socie-
dade anónima “B”, sendo que a so-
ciedade “A” se comprometeu a ven-
der à sociedade “B” 90 por cento do
capital detido.
A 29 de outubro de 2008, os só-
cios da sociedade “A” aprovaram
a transformação da sociedade por
quota em sociedade anónima, sen-
do que o requerente votou a favor da
mesma, passando assim a deter cin-
co por cento do capital da socieda-
de anónima, tendo em atenção que
adquiriu cinco por cento do capital
da sociedade por quotas em 2005.
Posteriormente, dois dias a seguir,
o requerente vendeu a sua partici-
pação social à sociedade anónima.
A 31 de outubro de 2012, os sócios
alienaram 90 por cento das partici-
pações sociais em conjunto e o re-
querente vende a totalidade da sua
participação.
Por fim, o diretor de finanças do do-
micílio fiscal da sociedade autorizou
o procedimento de inspeção tribu-
tária, emitindo a ordem de serviço,
tendo este início a 12 de outubro de
2011. Durante o procedimento, a
administração tributária conclui
3. 26 CONTABILISTA 215
COLABORAÇÃO ISCAL
sem utilização desses meios, efe-
tuando-se então a tributação de
acordo com as normas aplicáveis
na sua ausência e não se produzin-
do as vantagens fiscais referidas.»
Doutrinariamente, a CGAA é ca-
racterizada por ser composta por
quatro elementos: elemento meio,
resultado, intelectual e normativo.
Primeiramente, o elemento meio
corresponde à via que fora utili-
zada com vista a obter determi-
nado ganho ou vantagem fiscal
desejada, sendo que temos de ter
em consideração os atos que tive-
ram na origem da obtenção deter-
minado fim fiscal.
Seguidamente, o elemento resul-
tado consiste na vantagem fiscal
e equivalência económica obtidas,
sendo que esta vantagem fiscal
resulta da comparação com a ope-
ração «normal», isto é, a que teria
sido praticada com vista a atingir
determinado resultado não-fis-
cal, segundo Courinha. Assim,
caracteriza-se numa situação cla-
ramente mais favorável, no que
respeita à carga tributária, da que
resultaria se o contribuinte tivesse
praticado os atos «normais» sujei-
tos a tributação.
Por sua vez, o elemento intelectual
resulta da motivação do contri-
buinte, no qual detém como ca-
racterística principal a alteração
das prioridades que movem o con-
tribuinte, sendo necessário que a
finalidade fiscal prevaleça sobre a
finalidade não fiscal.
Segundo Courinha, não podemos
apenas inferir da análise dos atos
praticados em causa, mas também
ter em consideração que as escolhas
adotadas pelo contribuinte sejam
fiscalmente orientadas e, conse-
quentemente, determinado resul-
tado fiscal prevaleça, então, sobre o
resultado não fiscal.
Assim, o elemento intelectual
preenche os elementos meio e re-
sultado, na medida em que, apenas
após a verificação do elemento inte-
lectual, se pode censurar os outros
dois. Todavia, estamos perante uma
prova irrefutável, visto que apenas
se obteria através da confissão do
contribuinte, sendo que a Admi-
nistração Tributária (AT) recorre a
provas indiciárias, perante um con-
texto de razoabilidade e normalida-
de, deduzindo a vontade do sujeito
dos atos celebrados.
Atendendo ao elemento normati-
vo, este representa a reprovação
normativo-sistemática da vanta-
gem obtida, no qual «identifica
a desconformidade do resultado
obtido através do ato abusivo com
a ratio legis, espírito ou propósito
da lei e os princípios do sistema
fiscal.» Visto que este elemento,
ao longo dos anos, tem sido acom-
panhado por opiniões diversas, a
AT alega que não se pode analisar
os art.os 10.º, n.º 2, alínea a) + 43.º
n.º 4, alínea b) do CIRS isolada-
mente, mas sim em conjugação
com o art.º 38.º, n.º 2 da LGT. O
objetivo da Administração Tribu-
tária previa um incentivo, o qual
estava direcionado aos «inves-
tidores que transformam e apro-
veitam a nova forma de gestão»,
e não aos que se aproveitam da
inépcia do legislador.
A estes quatro requisitos acres-
ce o elemento sancionatório, que
se cifra, a final, na consequência
legal de aplicação da CGAA, acar-
retando a ineficácia do ato ou do
negócio jurídico para efeitos fis-
cais, mantendo, porém, o ato ou
o negócio jurídico a sua valida-
de e eficácia no âmbito civil (en-
tre partes e terceiros). A ineficá-
cia consagrada na Lei sanciona o
comportamento elisivo pelo que
os efeitos fiscais obtidos ou a obter
deixam de ser vinculativos para a
administração fiscal, passando a
desconsiderar os atos praticados
e negócios jurídicos celebrados,
adaptando-os em termos capazes
de negar as vantagens fiscais pri-
mordialmente visadas.
Verificação da aplicação
da cláusula geral antiabuso -
elemento meio
Elemento meio - No processo em
análise, o elemento meio consis-
te na combinação de dois fatores,
designadamente a transformação
da sociedade por quotas em socie-
dade anónima e a alienação das
participações sociais, resultando
assim na eliminação do imposto
que outrora seria devido.
Efetivamente, no processo
n.º47/2013 - T, houve então um
contrato-promessa, «segundo
o qual a compra poderia ter por
objeto quotas ou ações e a AT
alega que as vantagens indica-
das são apenas aparentes e que
para a compradora seriam in-
significantes.» Isto é, se a efe-
tiva transformação societária
se demonstrasse como um fator
fulcral na realização do contra-
to, tal estaria previsto no con-
trato-promessa assinado. Assim,
a transformação societária tor-
na-se questionável quando rea-
lizada apenas dois dias antes da
celebração do contrato, tendo o
contrato-promessa sido assinado
três meses antes.
Com efeito, a reorganização so-
cietária poderá ser realizada por
duas vias:
• Através da prévia transfor-
mação da sociedade, a qual fora
utilizada pelos requerentes no
processo em análise, resultando
assim na exclusão da tributação;
4. FEVEREIRO 2018 27
COLABORAÇÃO ISCAL
• Através da alienação das quotas,
a qual é considerada a via normal
e, consequentemente, objeto de
tributação, ao abrigo do art.º 10.º
do CIRS.
Nas diversas situações em estu-
do, há que ter em consideração
que não se pode analisar as ações
dos contribuintes isoladamente,
mas sim a globalidade da atuação
do contribuinte, retirando então
a sua intenção.
Assim, a AT alega que os diversos
argumentos económicos apresen-
tados no relatório justificativo de
transformação societária não se
efetivaram, nomeadamente:
• Desenvolvimento futuro da em-
presa: diria respeito à comprado-
ra, visto que é a adquirente da
quase totalidade da sociedade,
tendo o poder de decisão sobre a
forma jurídica a assumir pela so-
ciedade;
• Ganhos de eficiência e proje-
ção: os quais não se capitaliza-
riam dentro do período de tempo
em que os vendedores detinham
ainda o controlo e consequente
proveito dos futuros ganhos da
sociedade;
• Gestão mais profissional e con-
trolo mais eficiente: não seria
válido, atendendo a que a vende-
dora já não teria o controlo efeti-
vo da sociedade.
Por último, os vendedores não po-
dem alegar que a atividade da so-
ciedade, designadamente o «bom
ambiente» da mesma, se tenha
alterado após a transformação so-
cietária, pois aquando a venda, a
atividade da sociedade já não teria
efeito sobre a vendedora.
Em suma, os argumentos justi-
ficativos expostos no relatório
justificativo da transformação
societária não se verificam, efeti-
vando-se assim o elemento meio.
5. 28 CONTABILISTA 215
COLABORAÇÃO ISCAL
Elemento resultado
Relativamente aos diferentes resul-
tados fiscais obtidos, as mais-va-
lias, isto é, a diferença entre o preço
de realização e o preço de aquisição
de quotas, seriam tributadas a 10
por cento, nos termos do art.º 72.º,
n.º 4 em conjugação com o art.º 10.º,
n.º 1, alínea b) do CIRS, na redação
em vigor em 2008.
Contrariamente, a alienação de
participações sociais não seria tri-
butada a 10 por cento, na aceção do
art.º 10.º, n.º 2 alínea, a) e art.º 43.º,
n.º 4, alínea b) do CIRS, na redação
em vigor em 2008, pelo que este úl-
timo regime era claramente mais
vantajoso.
Por outro lado, a equivalência do re-
sultado não fiscal, atendendo a que
a compradora adquiriu 90 por cento
da sociedade, o resultado económi-
co seria de obter o controlo da titu-
laridade da sociedade bem como da
direção e da administração, inde-
pendentemente da forma societária
que a sociedade assumisse.
Do mesmo modo, o timing para a
decisão da transformação da so-
ciedade face às vantagens fiscais,
ou seja, o curto espaço de tempo no
qual ocorreu a transformação não
permite a verificação das respetivas
vantagens económicas.
Por conseguinte, temos, também,
de ter em conta que «é a motivação
fiscal que determina a atuação do
contribuinte», o que tornará o ato
censurável, dependendo da nature-
za da motivação.
No tocante à decisão do proces-
so n.º 51/2014-T, que recaiu sobre
uma situação de transformação de
seis sociedades por quotas em so-
ciedades anónimas (todas em 15 de
janeiro de 2009), adquiridas poste-
riormente (todas em 14 de outubro
de 2009) por uma sociedade gestora
de participações sociais (SGPS), ve-
rificou-se que todas foram vendidas
pela mesma pessoa (singular) e ad-
quiridas pela mesma SGPS de que
é único administrador (99,996 por
cento) a pessoa singular que as alie-
nou e contra quem a AT instaurou o
procedimento da CGAA, tributando
as mais-valias resultantes da alie-
nação das ações como se se tratas-
sem de mais-valias resultantes da
alienação de quotas. Para o sentido
desta decisão terão sido decisivos
não só os encargos suportados para
realização do conjunto de operações
onde se integram os negócios jurí-
dicos de transformação societária
não justificados «na perspetiva do
grupo societário», não se demons-
trando as alegadas vantagens de
financiamento supostamente gera-
das pela operação.
Acresce que o CAAD sopesou, igual-
mente, as formas jurídicas instru-
mentalizadas nas operações realiza-
das,considerandoqueassociedades,
enquanto pessoas coletivas de direi-
to, detêm uma função económico-
-social ligada a interesses comuns
com caráter duradouro e considerou
6. FEVEREIRO 2018 29
COLABORAÇÃO ISCAL
que estas finalidades são subjacentes
ao regime fiscal e, por conseguinte,
imprescindíveis.
Elemento intelectual
Sendo o elemento intelectual ca-
racterizado pela motivação do con-
tribuinte e, como anteriormente
mencionado, podendo apenas ser
confirmado pela confissão do pró-
prio contribuinte, a AT terá de re-
correr a provas indiciárias.
Com efeito, o indício mais forte que
nos fora apresentado é o curto pe-
ríodo entre a transformação da so-
ciedade e a venda das participações
sociais, o qual ocorreu num perío-
do de dois dias, não permitindo aos
vendedores obterem qualquer ga-
nho efetivo, enquanto detentores
das participações sociais.
Outro indício, não menos impor-
tante, é o facto do contrato-pro-
messa que fora celebrado três meses
antes, concedendo tempo suficiente
para que a operação da transforma-
ção societária ocorresse. De igual
modo, a forma societária da socie-
dade é indiferente para os vendedo-
res, pois já produz qualquer efeito
para estes.
Elemento normativo
De acordo com o processo n.º47/
2013-T e com o acórdão do TCA-Sul
04255/10, de 15 de fevereiro de 2011,
as normas antiabuso têm na sua
origem a necessidade de instituir
meios de reação apropriados, com
vista a assegurar não só o cumpri-
mento do princípio da igualdade na
repartição da carga tributária, mas
também a prossecução da satisfa-
ção das necessidades financeiras do
Estado e demais entidades públicas.
Efetivamente, embora a AT reco-
nhecer que está intrínseco na racio-
nalidade económica do contribuin-
te a minimização dos impostos a
suportar, este terá de escolher a via
menos onerosa de tributação, den-
tro do limiar tanto da lei como do
direito, sendo o seu limite a fraude
à lei. Com efeito, atendendo sempre
ao art.º 103.º, n.º 1 da Constituição
da República Portuguesa (CRP), o
qual alega que «o sistema fiscal visa
a satisfação das necessidades finan-
ceiras do Estado e outras entidades
públicas e uma repartição justa dos
rendimentos e da riqueza.»
Como anteriormente mencionado,
o art.º 1.º do CIRS, na redação em
vigor em 2008, teria de ser conju-
gado com o art.º 38.º, n.º 2 da LGT,
este último tem como finalidade
primordial o sancionamento dos
comportamentos e intenções que se
escondem por detrás de operações
artificiais.
Concluindo, o argumento apre-
sentado pelos requerentes de uma
existente «lacuna consciente de
tributação» na lei, não seria válido,
visto que, e como exposto no pro-
cesso n.º 131/2014 – T, «os direitos
de liberdade de empresa e de ini-
ciativa económica não são direitos
absolutos, não podem ser exercidos
de forma abusiva, a fim de subverter
o espírito das normas de tributação
e de concessão dos benefícios fiscais
e, dessa maneira, atingir um resul-
tado contrário ao Direito.»
De igual forma, no processo
n.º47/2013 – T, a artificialidade pela
qual caracteriza as ações do con-
tribuinte não poderá ser tolerada
pelo Direito e, atendendo a que os
direitos expressos na lei não são ab-
solutos, não devendo ser exercidos
de forma abusiva, considera-se que
o elemento normativo está, então,
preenchido.
Elemento sancionatório
Nas decisões em apreço, o elemento
sancionatório traduziu-se na tribu-
tação das mais-valias resultantes
de alienação de ações como se tra-
tassem de mais-valias resultantes
de alienação de quotas, e, por con-
seguinte, tributadas à taxa de 10 por
cento, ao invés de se manter a ex-
clusão de tributação.
Impossibilidade de aplicação
da CGAA - Da não verificação
do elemento normativo
A jurisprudência arbitral tem-se
pronunciado em termos maioritá-
rios no sentido da não aplicação da
CGAA quanto à problemática em
causa, nomeadamente na decisão
do processo n.º 123/2012, de 9 de
maio de 2013; na decisão do pro-
cesso n.º 124/2012, de 6 de junho
de 2013; na decisão do processo
n.º138/2012, de 12 de julho de 2013;
na decisão do processo n.º 138/2012,
de 12 de julho de 2013 e na decisão
do processo n.º 139/2013, de 19 de
dezembro de 2013.
A recusa da verificação do elemento
normativo pelo CAAD nestas deci-
sões é baseada em dois argumentos:
a existência de uma lacuna na lei e a
existência de uma opção dada pelo
legislador fiscal.
Existência de uma lacuna na lei
Os árbitros do processo n.º 43/2013
recorrem à doutrina de Courinha
(2004) de modo a estabelecer que
um resultado obtido ou pretendido
deve ser reprovado quando, con-
frontado com a intenção ou espíri-
to da lei, se verifica que este não é
desejado, previsto ou promovido
pelo Direito, mas antes rejeitado.
Nestes termos, o autor conclui que o
apuramento das «fronteiras do ato
elisivo» depende do «requisito da
condenação pelo ordenamento fis-
cal do resultado obtido».
De modo a reforçar este argu-
mento, no Processo n.º 124/2012 é
7. 30 CONTABILISTA 215
COLABORAÇÃO ISCAL
recorrido à doutrina de Saldanha
Sanches (2006:180) estabelecendo
que «é necessário encontrar no
ordenamento jurídico-tributário
e como condição sine qua non de
aplicação da cláusula antiabuso,
os sinais inequívocos de uma in-
tenção de tributar (…) primeiro,
porque a evitação fiscal abusiva
não pode confundir-se com a per-
manente tentativa do contribuinte
para reduzir a sua tributação ou
para ponderar cuidadosamente
- planeamento fiscal abusivo – as
consequências da Lei fiscal na sua
atividade empresarial ou pessoal
(…) segundo, porque nesse esforço
permanente do que podemos qua-
lificar como omissões deliberadas
– justas, ou não, é uma outra coi-
sa – do legislador fiscal e, se isso
aconteceu, não pode atribuir-se ao
aplicador da lei a tarefa que cabe
primariamente ao legislador.»
Como exemplo de «lacuna cons-
ciente de tributação», o autor
(2006:182) aponta para a transfor-
mação de uma sociedade por quo-
tas em uma sociedade anónima
salientando que «se o legislador, ao
mesmo tempo que tributa as mais-
-valias das alienações das quotas,
deixa por tributar as mais-va-
lias das ações ou as tributava com
uma taxa mais reduzida, não pode
deixar de se aceitar fiscalmente a
transformação de uma sociedade
comercial em sociedade por ações
mesmo que a transformação seja
motivada por razões exclusiva-
mente fiscais.»
Deste modo os árbitros concluem
que mesmo que a transformação
fosse motivada por razões exclusi-
vamente fiscais, é o legislador que
opta, expressamente, por tributar a
venda das quotas e por não tributar
a venda das ações naquele contexto,
conforme decorre dos artigos su-
pracitados.
Opção dada pelo legislador fiscal
Atendendo à coexistência no orde-
namento jurídico-tributário da tri-
butação em sede de IRS dos ganhos
decorrentes da venda de quotas com
a não tributação em sede daque-
le imposto dos ganhos resultantes
da venda de ações o contribuinte é
confrontado com dois regimes.
Quanto a esta problemática, o
CAAD na decisão proferida no
Processo n.º 138/2012, de 12 de
julho de 2013, recorre às palavras
de Saldanha Sanches (2006:180)
afirmando que «perante tal op-
ção do legislador fiscal – justa
ou não, mas tal já é uma questão
distinta - não estaria vedado ao
contribuinte o aproveitamento
daquele regime que se lhe afigure
mais favorável, no contexto de um
planeamento fiscal abusivo, e não
caberia ao aplicador da lei substi-
tuir-se às opções de tributar ou de
não tributar certas realidades.»
Na decisão arbitral n.º 43/2013, de
26 de novembro, é reforçado este
ponto de vista, sublinhando que
«desde início da vigência do CIRS,
que a divergência de tratamento
tributário das mais-valias obtidas
com a alienação de quotas e ações
tem merecido críticas e propos-
tas de alteração legislativa» e que
tal solução legislativa, comportava
uma assumida promoção da trans-
formação de sociedades, opção esta
que, por isso, não pode refutar ar-
tificiosa.
Partilhando a mesma opinião da
jurisprudência do CAAD, nomea-
damente a não aplicação da CGAA
nos casos de transformação de so-
ciedades por quotas em sociedades
anónimas e a subsequente aliena-
ção das participações sociais, Cou-
rinha defende que até à revogação
do art.º 10.º, nº1, alínea b) do CIRS
pela Lei n.º 15/2010, de 26 de julho,
era estabelecido um benefício fiscal
extremamente influente no com-
portamento adotado pelos contri-
buintes.
De acordo com Courinha (2014:189),
«tal como em todas as situações
onde a neutralidade fiscal é posta
em causa por um tratamento van-
tajoso dado a certas realidades por
Num tempo em que escasseiam recursos para
suportar um Estado fiscal que se tem revelado
desperdiçador e ineficiente face a uma economia
cada vez mais digital e uma sociedade cada vez
mais desmaterializada, não obstante ter sido
largamente debatida na doutrina, a discussão e
reflexão crítica relativamente à aplicação da CGAA
mantém a sua acuidade e atualidade
8. FEVEREIRO 2018 31
COLABORAÇÃO ISCAL
contraponto a outras que lhe são
sucedâneas ou similares, uma não
tributação como aquela que aqui se
debate comporta sempre um ele-
mento dinâmico.»
Este elemento dinâmico, segun-
do o autor (2014:190), consiste «na
pretendida relação de causa-efei-
to entre a perda de receita fiscal e
o estímulo assim dado à adoção de
um comportamento económico por
parte do sujeito passivo, o qual é
preferido em detrimento de um ou-
tro» e pode ser observado quando
o legislador promove as sociedades
anónimas preterindo as sociedades
por quotas, estabelecendo um tra-
tamento de discriminação positiva
exclusivamente assente na forma
jurídica e que o sujeito passivo con-
sequentemente acolhe.
Quaisquer dúvidas relacionadas
com a existência do incentivo à
transformação de sociedades por
quota em anónimas e a alteração
da forma jurídica das participações
sociais por parte do legislador fis-
cal, são dissipadas ao atender à re-
dação da versão inicial do Estatuto
dos Benefícios Fiscais (EBF).
No art.º 35.º do EBF – atualmente,
o art.º 43.º, nº 6, alínea a) do CIRS
– sob a epígrafe «transformação de
sociedades por quotas em socieda-
des anónimas» considera-se que a
data de aquisição de ações resultan-
tes da transformação de sociedades
por quotas em sociedades anónimas
é a data de aquisição das quotas que
lhes deram origem. Como conse-
quência e de acordo com o enten-
dimento de Courinha (2014) « não
se pode alegar que o sujeito passivo
está em fraude à lei fiscal quando
ele se comporta exatamente como
o legislador que atribuiu o benefí-
cio fiscal pretendeu que ele se com-
portasse, a saber, transformando
as sociedades por quotas de que era
sócio em sociedades anónimas pre-
viamente à alienação das respetivas
ações, com isto se valendo o bene-
fício.»
Para esclarecimento da evolução
histórica do regime jurídico em
estudo, tomaremos, em seguida,
como referência o voto de venci-
do do conselheiro Lopes de Sousa
constante da decisão do processo
n.º 51/2014-T.
Assim, o artigo 10.º, n.º 1, alínea b)
do CIRS, com a redação do Decreto-
-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novem-
bro, previa que a exclusão de tribu-
tação das mais-valias resultantes
da alienação onerosa de ações deti-
das pelo seu titular durante mais de
24 meses.
Por sua vez, o então art.º 35.º do De-
creto-Lei n.º 215/89, de 1 de julho
(EBF), fixava como data de aquisi-
ção de ações resultantes da trans-
formação de sociedades por quotas
em sociedades anónimas a data da
aquisição das quotas que lhes ti-
nham dado origem.
A Lei n.º 30-B/92, de 28 de dezem-
bro, diminuiu o período temporal
de detenção de ações exigido para
exclusão de tributação (de 24 para 12
meses) e, posteriormente, a Lei n.º
39-B/94, de 27 de dezembro, proce-
deu à remuneração dos artigos em
causa.
Com a publicação da Lei n.º-
30-G/2000, de 29 de dezembro, eli-
minou-se a exclusão da tributação
das mais-valias provenientes da
alienação de ações adquiridas após
a sua entrada em vigor, mantendo-
-se expressamente o regime ante-
rior para as ações adquiridas antes
dessa data (artigo 3.º, n.º 5 da Lei
n.º30-G/2000, de 29 de dezembro).
Sucede, porém, que este novo regi-
me não chegou a ser aplicado, por-
quanto, no tocante aos anos de 2001
e 2001, o n.º 9 do art. 147.º da Lei n.º
109-B/2001, de 27 de dezembro, es-
tabeleceu que era-lhes aplicável o
regime anterior à Lei n.º 30-G/2000
e, posteriormente, o Decreto-Lei
n.º 228/2002, de 31 de outubro, re-
introduziu o regime de não tribu-
tação das mais-valias derivadas da
alienação de ações detidas pelo seu
titular durante mais de 12 meses
(alínea a) n.º 2 do art.º 10.º do CIRS),
redação que se manteve até à entra-
da em vigor da Lei n.º15/2010, de 26
de julho, que revogou aquele pre-
ceito legal.
Courinha acrescenta um outro ar-
gumento de modo a sustentar a sua
opinião quanto à inaplicabilidade
da CGAA: o facto de a transforma-
ção de sociedades por quotas em
sociedades anónimas e a subse-
quente alienação das participações
sociais não constar no Decreto-Lei
n.º29/2008, de 25 de fevereiro.
A implementação do regime de co-
municação dos esquemas de pla-
neamento fiscal agressivo, através
do Decreto-Lei n.º 29/2008, de 25
de fevereiro, tem como principal
objetivo o conhecimento pela AT
de esquemas de planeamento fiscal
abusivo, para futuramente realizar
alterações legislativas e regula-
mentares.
Segundo Courinha (2014), o facto de
a transformação de sociedades por
quotas em sociedades anónimas não
constar no Decreto-lei, apesar de
ser frequentemente uma estrutura
de planeamento fiscal, demonstra
uma reserva não confessada por
parte da própria fazenda pública em
aplicar a CGAA nestes casos. O que
significa que este aspeto não deve
ser apenas tido em consideração
como realçado na deliberação de
casos com esta temática.
Conforme o autor anteriormente
referido, tratando-se de uma estru-
tura de planeamento fiscal muito
9. 32 CONTABILISTA 215
COLABORAÇÃO ISCAL
conhecida (e praticada em termos
quase massificados) é de estranhar
a sua não identificação naquela lis-
ta, onde estão apresentados os casos
marcadamente conhecidos suscetí-
veis de sujeição ao regime previsto
no n.º 2 do art.º 38.º da LGT.
Courinha ressalva a opção fei-
ta pela AT, arguindo que talvez os
serviços centrais da AT se tives-
sem apercebido da mais que pro-
vável inviabilidade da aplicação da
CGAA a tais operações, evitando
por isso listá-las.
Diversos membros da doutrina par-
tilham a mesma posição tomada
pelo CAAD, nomeadamente Sal-
danha Sanches (2006) que defende
que a problemática em questão não
deve ser abrangida pela CGAA dado
tratar-se de uma clara opção do le-
gislador por tipos estruturais e por
intensificar a falta de neutralida-
de da lei fiscal com a concessão de
um tratamento mais vantajoso às
ações face às demais participações
sociais.
Quanto à transformação de so-
ciedades por quotas em socieda-
des anónimas, Fernandes Oliveira
(2009) insinua que não é possível
a aplicação da CGAA dado que está
em causa um direito de opção que
o sistema fiscal permite aos contri-
buintes.
Por fim, Alberto Xavier (1981) suge-
re como exemplo de planeamento
fiscal legítimo, o aproveitamento
das diferenças de tratamento fiscal
entre os diferentes tipos societários
quando o tratamento de um seja in-
justificadamente mais favorável do
que o concedido a outro.
Análise crítica
As decisões dos CAAD em estudo,
grosso modo, analisam a factuali-
dade controvertida perscrutando
e aplicando os quatro requisitos da
CGAA, de acordo com a doutrina
largamente difundida de Gustavo
Courinha.
O cerne da divergência interpre-
tativa das decisões do CAAD em
análise reside, essencialmente, no
sentido e alcance dado ao elemento
normativo, que tem sido considera-
do por parte da doutrina como sen-
do um dos requisitos da CGAA mais
relevantes e significativos uma vez
que, embora não decorra expressa-
mente da lei, não pode ser ignorada
a intenção de combate à evasão fis-
cal que inspira e enforma o regime
da CGAA.
O elemento normativo exige que
perante uma concreta situação que
possua natureza anómala e indicie
que tenha sido fiscalmente motiva-
da, o intérprete questione, primei-
ramente, se a intenção da norma ou
os princípios essenciais de um certo
setor de tributação são contrários à
aceitação daquele resultado. Ora,
esta exigência torna a tarefa de
aplicação da CGAA uma operação
bastante complexa, por vezes de
resultados dúbios, especialmente,
nas situações em que precisamente
o legislador permitiu a adoção de
comportamentos fiscalmente mais
vantajosos para os contribuintes,
especialmente, perante o direito à
liberdade de gestão empresarial e ao
planeamento fiscal do contribuinte.
As decisões do CAAD em apreço
no presente artigo traduzem duas
interpretações divergentes sobre
idêntica factualidade, cujo âmago
reside no sentido e alcance dado ao
resultado da conjugação da alínea
b) do n.º 2 do art.º 10.º do Código do
IRS, com a alínea b) do n.º 4 do art.º
43.º do Código do IRS, bem como o
n.º 2 do art.º 38.º da LGT, ou seja, a
aplicação da CGAA.
Atento o supra exposto, conside-
rando os elementos de interpreta-
ção previstos no sistema jurídico
português, passaremos a comparar
as diferentes perspetivas das deci-
sões deste trabalho. Ou seja, con-
forme estatuído no n.º 1 do art.º 9.º
do Código Civil e porque se trata de
um elemento jurídico, a interpre-
tação não deve cingir-se à letra da
lei, mas reconstituir o pensamento
legislativo, acrescentando, desta
forma, certeza e segurança na tri-
butação.
O elemento gramatical, não sen-
do o fim em si da interpretação, é,
indubitavelmente, o seu ponto de
partida.
Da leitura das decisões do CAAD
que se pronunciaram pela não au-
torização de aplicação CGAA em
estudo (orientação maioritária),
ressalta, desde logo, ser sua con-
vicção de que a letra da lei conce-
de um tratamento mais favorável a
quem procedesse à transformação
da sociedade por quotas em socie-
dade anónima, reconhecendo, por
essa via, um benefício fiscal. Assim,
tendo o próprio legislador fiscal to-
mado a decisão «justa ou não » de
lesar a neutralidade fiscal pelo tra-
tamento mais favorável concedido,
não cabe ao aplicador da lei substi-
tuir-se às opções de tributar ou não
tributar certas realidades.
Contrariamente, as decisões que
autorizaram a aplicação da CGAA
alertam para a necessidade de não
se poder fazer uma leitura da lei
«de forma isolada, mas em conju-
gação com o art.º 38, n.º 2 da LGT».
Esta orientação ressalta a função
da CGAA como meio de proteção
de princípios jurídicos superiores,
designadamente, a prossecução da
justiça, o cumprimento do princí-
pio da igualdade na repartição da
carga tributária bem como do en-
calço da satisfação das necessidades
financeiras do Estado (nos termos
10. FEVEREIRO 2018 33
COLABORAÇÃO ISCAL
do n.º 1, do art.º 103.º da CRP), re-
presentando uma forma de com-
bate à contradição entre formas
jurídicas adotadas pelas partes e
os fins económicos típicos dos atos
e negócios jurídicos, prevalecendo
interesses de natureza pública com
relevo superior sobre valores como
a certeza e segurança das relações
jurídico-tributárias . Deste modo,
a aplicação da CGAA encontra-se
justificada se, no caso decidendo,
se verificar que os fins económicos
se afastam das típicas formas jurí-
dicas, sob pena de perversão do sis-
tema.
No tocante ao elemento histórico, a
orientação maioritária defende que
o legislador tributou deliberada-
mente apenas as mais-valias resul-
tantes de alienação de quotas, não
só por se tratar de uma norma várias
vezes revista, ponderada e mantida
, mas também por ter resistido inal-
terada tão longamente, não caben-
do ao aplicador da lei substituir-se
às opções do legislador fiscal.
No polo oposto, a orientação mino-
ritária não reconhece aos critérios
de política fiscal justificativos do
tratamento favorável da exclusão de
tributação das mais-valias de ações
a potencialidade de legitimar o uso
abusivo do mesmo, entendimen-
to que veio a ser confirmado pela
revogação do n.º 2 do art.º 10.º do
Código do IRS, pela Lei n.º 15/2010,
de 26 de julho, como a «forma do
legislador reagir aos abusos per-
petrados em nome de uma alegada
abertura legislativa.»
No tocante ao elemento teleológi-
co, traduzindo a ratio legis, o fim
visado pelo legislador ao redigir a
norma, de acordo com a orienta-
ção maioritária, a reposição, pela
Lei n.º 16-B/2002, de 31 de maio, do
regime anterior que excluía de tri-
butação as mais-valias resultantes
da alienação de ações, com justifi-
cação no impacto negativo provo-
cado pela anterior reforma fiscal no
mercado de capitais, bem como a
circunstância das diversas propos-
tas de alteração daquele regime de
exclusão nunca terem vingado, de-
signadamente, os relatórios da Co-
missão para o Desenvolvimento da
Reforma Fiscal, em 1996 e do Grupo
de Trabalho para o Estudo da Polí-
tica Fiscal, Competitividade, Efi-
ciência e Justiça do Sistema Fiscal,
em 2009, evidenciam que, mesmo
sendo abusivo, o regime deve ser
permitido, porque desejado e até
incentivado pelo legislador.
Do ponto de vista sistemático esta
orientação releva o facto de, à data,
existir um acervo de leis relaciona-
das com as sociedades comerciais
com um tratamento preferencial
pelo modelo de organização socie-
11. 34 CONTABILISTA 215
COLABORAÇÃO ISCAL
tária da sociedade anónima, de-
signadamente, o Decreto-Lei n.º
76-A/2006, de 29 de março, que
atualizou e flexibilizou os modelos
de governo das sociedades anóni-
mas, adotando medidas de sim-
plificação e eliminação de atos e
procedimentos notariais e regis-
trais para, conforme consta do seu
preâmbulo, «promover a competi-
tividade das empresas portuguesas,
permitindo o seu alinhamento com
modelos organizativos avançados.»
Contrariamente, a ideia que per-
passa as decisões da orientação
minoritária é a de condenação do
aproveitamento do regime de ex-
clusão tributária por parte de quem,
recorrendo a meios artificiosos ou
fraudulentos, transformou socie-
dades por quotas em sociedades
anónimas, defendendo que essa si-
tuação não pode deixar de merecer
censura normativo-sistemática por
parte do ordenamento jurídico .
Acresce que estas decisões confron-
tam os fins típicos do negócio jurí-
dico efetivamente celebrado com
aqueles que normalmente seriam
celebrados nas circunstâncias em
discussão, numa lógica de econo-
mia financeira societária. Assim,
nos casos em que a transformação
das sociedades por quotas em socie-
dades por ações se revelou um ato
inútil do ponto de vista societário,
como seja, por não visar a atração
comprovada de capitais, nem alte-
rações na estrutura organizativa,
conclui-se que essa situação factual
concreta evidenciava uma situa-
ção abusiva. Para a formação desta
convicção terá contribuído de for-
ma decisiva o probatório produzido
nos autos de processos.
Perante o excurso, torna-se inevi-
tável questionarmo-nos qual a ratio
legis dos preceitos legais (isolada e
conjuntamente) em análise e qual
a sua valoração pelo ordenamento
jurídico.
A CGAA, tal como prevista no n.º
2 do art.º 38.º da LGT não se traduz
numa fórmula rígida e fechada, an-
tes uma previsão aberta que visa
tornar ineficazes fiscalmente os
atos jurídicos dirigidos à redução,
eliminação ou deferimento tempo-
ral de impostos que seriam devidos
não fosse o emprego de meios arti-
ficiosos e fraudulentos e com abuso
de formas jurídicas, escopo alcan-
çável por via interpretativa.
Ora, uma das críticas dirigidas
contra as decisões que autorizaram
a aplicação da CGAA traduz-se no
facto de se entender que por meio
destas decisões o julgador estar-se-
-ia a imiscuir numa zona de pla-
neamento fiscal aberto pelo legisla-
dor aos contribuintes, vedada quer
à administração fiscal quer ao po-
der jurisdicional incorrendo, deste
modo, no risco de uma aplicação
equívoca do sistema fiscal.
Com efeito, é inegável que as nor-
mas em apreço estiveram em vigor
durante cerca de uma década e que
norma que equiparou os momentos
de aquisição para efeitos de tributa-
ção, inicialmente prevista no art.º
35.º do EBF, com a redação dada
pelo Decreto-Lei n.º 198/01, de 3 de
julho passou a constar do próprio
Código de IRS, na alínea b) n.º 4 do
art.º 43.º (hoje, n.º 6 do dito inciso
legal).
A elisão fiscal, contudo, realiza-se
através de atos ou negócios lícitos
«mas que a lei fiscal qualifica como
não sendo conformes com a subs-
tância da realidade económica que
lhe está subjacente, assim deven-
do qualificar-se como anómalos,
anormais ou abusivos» acarretando
sérios prejuízos para a concorrên-
cia empresarial, erosão das receitas
fiscais, «a distorção do princípio da
equidade e um claro menosprezo
do cumprimento das regras de ci-
dadania, situações que se fundam
em causas de carácter político, eco-
nómico, psicológico e técnico», tal
como refere o Acórdão do TCA- Sul,
processo n.º 04255/10 de 15-02-2011.
As decisões que autorizaram a aplicação da CGAA
alertam para a necessidade de não se poder fazer
uma leitura da lei «de forma isolada, mas em
conjugação com o art.º 38.º, n.º 2 da LGT».
Esta orientação ressalta a função da CGAA como
meio de proteção de princípios jurídicos superiores,
designadamente, a prossecução da justiça,
o cumprimento do princípio da igualdade
na repartição da carga tributária.
12. FEVEREIRO 2018 35
COLABORAÇÃO ISCAL
Conforme explanado, a orientação
minoritária perfila que as altera-
ções societárias motivadas por ra-
zões que não a atração de capitais,
alterações na estrutura organiza-
tiva, a captação e/ou dispersão de
capital, reforço das condições de fi-
nanciamento do grupo, mesmo que
meramente eventuais ou futuras
constituem evidências de situações
abusivas em especial se ocorrer
concentração de capital num indi-
víduo.
Ora, esta orientação, não obstante
aceitar que o legislador previu um
regime de tributação mais favorável
às sociedades anónimas, designa-
damente, pelo reconhecimento de
benefícios fiscais de que o regime
de exclusão de tributação das mais-
-valias resultantes da alienação de
ações previsto na então alínea a) do
n.º 2 do art.º 2.º do Código do IRS é
exemplo, não deixam de perscru-
tar se as finalidades que presidiram
àquela exclusão de tributação foram
cumpridas no caso concreto.
Ou seja, nestas situações em que a
fronteira entre a ratio legis e a atua-
ção contra legis, porém, ainda, in-
tra legis dos particulares é muito
ténue, as decisões do CAAD supra
referenciadas procedem a um estri-
to controlo de verificação do proba-
tório que parece aproximar-se das
doutrinas e princípios de interpre-
tação desenvolvidos em diversos
países em matéria de aplicação da
CGAA, designadamente, a substan-
ce over from doctrine (materialida-
de do negócio jurídico sobrepõe-se
à sua forma) ou o business purpose
(no âmbito do qual se escrutina a
validade dos motivos económicos
subjacentes ao negócio jurídico face
aos da simples economia fiscal).
Neste contexto, perante a constata-
ção de que se estava perante o uso de
expedientes puramente artificiais,
a autorização da aplicação da CGAA
justificou-se como meio de com-
bate ao abuso de direito no sentido
de prevalecer a substância sobre a
forma, ou seja, o interesse público
da descoberta da verdade material
face aos interesses financeiros dos
particulares, indo no sentido da
jurisprudência comunitária, desig-
nadamente, o acórdão Cadbury-S-
chewepps (C-196/06).
Figura, com efeito, pouco verosí-
mil que o legislador, ao conceber
o regime de exclusão de tributa-
ção das mais-valias resultantes da
alienação de ações, originadas pela
conversão de sociedade por quotas
em anónima, previsse e quisesse
aí englobar as situações em que a
transformação societária ocorreria
pouco tempo depois da alienação
(nas decisões apreciadas, entre as
operações mediaram dois dias ou
alguns meses, não ultrapassando o
prazo de um ano) ou aquelas em que
o adquirente e vendedor correspon-
dessem à mesma entidade do ponto
de vista económico (no caso uma
SGPS que acaba por deter o contro-
lo das sociedades anónimas), sem
que dessa operação adviesse qual-
quer ganho para a sociedade e para
a concorrência empresarial, com
custos avultados e desnecessários
dentro da lógica económica-em-
presarial.
Será ainda legítimo indagar sobre
as razões que conduziram o legis-
lador a considerar, através de uma
ficção legal, que a data de aquisi-
ção das ações corresponde à data
de aquisição das quotas que lhe
deram origem. Não terá o legis-
lador, simplesmente, pretendido
evitar custos administrativos que,
a final, se revelariam desneces-
sários? Deverá a alínea b) do n.º
4 do art.º 43.º do Código do IRS,
enquanto norma de determinação
do rendimento coletável, inserida
no capítulo II do Código do IRS,
ter o mesmo valor interpretativo
que uma norma de incidência, tal
como a constante da alínea b) do
n.º 2 do art.º 10.º do Código do IRS
que determina a exclusão de tri-
butação de mais-valias resultan-
tes de alienação de ações?
A tarefa reservada ao intérprete
de que resultaram as decisões ob-
jeto do presente trabalho, peran-
te a eventualidade de aplicação
da CGAA traduz-se, com efeito,
numa tarefa bastante complexa
pelo que qualquer reflexão sobre
as mesmas captará apenas parte
da realidade porquanto afigura-se
que os factos provados no processo
terão sido determinantes no senti-
do da decisão.
Não se olvide que o planeamento
fiscal traduz um direito subjetivo
dos contribuintes, cujo núcleo deve
ser respeitado e garantido. Porém,
o direito subjetivo ao planeamento
não é um direito absoluto pelo que o
sujeito passivo detém, simultanea-
mente, um ónus de planeamento e
um direito subjetivo de optar en-
tre os vários comportamentos le-
galmente admissíveis sob pena de
violação do princípio da igualdade
e da capacidade contributiva.
Antes de finalizar, atento que na
data de elaboração deste trabalho
algumas das decisões aqui retrata-
das não tinham transitado em jul-
gado, de acordo com a indicação
constante no site do CAAD, a dis-
cussão em torno desta matéria está
longe de se encontrar encerrada.z
Bibliografia disponível em («A Ordem – Publi-
cações – Revista Contabilista – Bibliografia»)
*Alunas do mestrado em Fiscalidade no
Instituto Superior de Contabilidade
e Administração de Lisboa